sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Fatman

Papai Noel. Eis um papel que, para ser sincero, nunca imaginei que veria Mel Gibson interpretar. Provavelmente essa impressão seja resultado da imagem unidimensional de “bom velhinho” que padronizou essa figura natalina, algo que não encaixa nos tipos durões e falhos que Gibson interpretou ao longo da carreira. Em parte, Fatman mostra que essa impressão era equivocada. Digo “em parte” porque o longa até traz Gibson interpretando o clássico personagem, mas trata-se de uma versão diferente do que estamos acostumados, parecendo ter sido moldada para que o talentoso ator caísse com uma luva no papel. E além de ser interessante ver Gibson dar vida a essa versão do personagem, isso ainda acontece em um filme muito bacana.

Em Fatman, o Papai Noel é conhecido como Chris Cringle, sujeito que vive em uma fazenda com sua esposa, Ruth (Marianne Jean-Baptiste), e mantém ali uma fábrica para fazer os brinquedos que as crianças merecedoras ganham, um negócio que está indo de mal a pior. Enquanto isso, o jovem Billy Wenan (Chance Hurstfield) acorda no Natal e vê que ganhou de presente um pedaço de carvão, o que o faz querer se vingar do Papai Noel. Para isso, ele contrata o Magrelo (Walton Goggins), um assassino profissional que tem seus próprios ressentimentos com Chris.

A execução dos irmãos Eshom e Ian Elms, que escreveram o roteiro e dirigiram a produção, capricha ao explorar bem a ideia por trás da história, que por si só já é divertidamente absurda. Além de criarem uma lógica convincente para a existência do Papai Noel naquele universo, os cineastas conseguem equilibrar bem o tom da narrativa, que diverte com certos exageros, mas sem deixar de se levar a sério, rendendo ainda alguns momentos de genuína tensão, como no explosivo terceiro ato.

Mas o que me chamou mais atenção em Fatman é que o filme faz essas coisas sem sacrificar o desenvolvimento dos personagens. Assim, o ótimo Walton Goggins faz do Magrelo um indivíduo frio e ameaçador, mas pontualmente tem chances de sugerir como o assassino se tornou a pessoa que é agora, apontando para um passado repleto de tristezas que tridimensiona o personagem. O mesmo serve para Billy, que o jovem Chance Hurstfield encarna como um sociopata riquinho e mimado, mas aos poucos vemos que isso vem da completa falta de autoridade em sua vida.

Mas o grande destaque fica mesmo para Mel Gibson. Exibindo seu carisma habitual, o ator faz de Chris Cringle uma figura bondosa, que faz sempre o melhor que pode e exibe um real afeto por seu trabalho e pelas pessoas ao seu redor. Mas ao mesmo tempo ele não deixa de se entregar a suas frustrações, que o desmotivam e ditam o rumo de suas ações. Assim, Gibson concebe um Papai Noel que pode até ter sua aura mágica (como vemos nas cenas em que ele mostra saber tudo sobre a vida das pessoas), mas se aproxima muito de ser um indivíduo comum (arrisco dizer que é uma das versões mais humanas que lembro de ver do Papai Noel, ao menos nos últimos anos). Para completar, Gibson ainda forma uma ótima dinâmica com a excelente Marianne Jean-Baptiste, cuja presença como Ruth surge sempre repleta de calor humano.

Assistir a Fatman acaba sendo um verdadeiro deleite. E não consigo evitar de classificar o filme como uma das boas surpresas de 2020.


Nota:



terça-feira, 1 de setembro de 2020

Power

Nova produção da Netflix, Power é situado em um futuro próximo, quando um grupo liderado por Biggie (Rodrigo Santoro) chega à cidade de Nova Orleans para testar um novo produto: “Power”, uma pílula que dá a seu usuário um superpoder que dura exatos cinco minutos. Nesse contexto, as histórias de três personagens se conectam. Art (Jamie Foxx) é um ex-soldado que não mede esforços para acabar com a organização por trás da pílula, mesmo objetivo de Frank (Joseph Gordon-Levitt), um policial que usa o produto para encarar de igual para igual aqueles que utilizam os superpoderes para cometer crimes. E ambos acabam tendo a ajuda de Robin (Dominique Fishback), uma jovem em busca de uma vida melhor, mesmo que para isso tenha que fazer parte do tráfico da pílula.

O roteiro de Power parte de um conceito interessante, sendo hábil ao trazer elementos que conhecemos dos filmes de super-heróis ao mesmo tempo em que mantém a história calcada no mundo real. E como o longa se situa em Nova Orleans, uma cidade que até hoje sofre com as consequências do Furacão Katrina, os diretores Henry Joost e Ariel Schulman exibem cuidado ao mostrar como o local é tratado com descaso por figuras poderosas, que subestimam a capacidade de seus habitantes. É uma pena, porém, que esses detalhes não sejam mais aprofundados, dando espaço para cenas de ação pouco envolventes, com os diretores apostando em uma montagem frenética que torna difícil entender o que acontece na tela, ao passo que os efeitos visuais tentam criar uma grandiosidade que não deixa de soar artificial.

Mas Power tem a sorte de contar com um ótimo trio no centro da narrativa. Jamie Foxx, Joseph Gordon-Levitt e Dominique Fishback criam figuras simpáticas em Art, Frank e Robin, desenvolvendo ainda uma dinâmica divertida em cena e que contribui para que nos importemos com o que acontece com os personagens (Fishback, aliás, é a grande revelação do projeto, e espero vê-la ganhar papeis cada vez melhores no futuro). A qualidade dos heróis compensa um pouco o fato de Biggie ser um vilão pavoroso. Rodrigo Santoro se esforça, mas pouco tem a fazer com um personagem subdesenvolvido, que é tratado como um capanga comum pelo roteiro.

Por lançar várias produções a cada ano, o subgênero dos filmes de super-heróis já parece estar ficando saturado. Sendo assim, um longa como Power até surge com algum frescor. O resultado pode não ser muito marcante, mas ao menos consegue divertir.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

XVI Fantaspoa - Última Parte e Considerações Finais

Os últimos dez dias foram interessantes, para dizer o mínimo.

Como falei logo na primeira parte dessa cobertura do XVI Fantaspoa, eu não tenho o hábito de cobrir festivais. Quando disse que tentaria assistir e comentar o maior número de filmes possível, eu achava que não conseguiria fazer o plano dar certo e o compromisso (mesmo não sendo muito grande) viria por água abaixo. Mas vejam só... Até que as coisas correram bem, fazendo minhas inseguranças queimarem a língua.

Acabei assistindo e comentando 25 longas-metragens durante os dez dias de Fantaspoa, o que me deixa meio longe de poder dizer que vi todos os 49 trabalhos selecionados (isso que ainda havia vários programas de curtas-metragens que não conferi). Mas considerando que foi uma primeira tentativa de cobrir um festival, acredito que os filmes que consegui encaixar em meio a minha rotina dentro de casa foram um bom aprendizado, rendendo também uma bem-vinda e estimulante distração para os tempos que temos vivido. E foi uma bela edição de Fantaspoa, por mais que assistir aos filmes na tela do meu computador e sozinho no meu quarto por vezes me passasse certa tristeza, já que muitas obras mereciam ser conferidas em uma sala de cinema lotada (quem sabe um dia?).

Olhando aqui os textos que fui escrevendo ao longo desses dias, admito que sinto certo orgulho. Mas acho que vocês podem dizer melhor que eu se o conteúdo produzido ficou legal ou não. Espero que tenham curtido tanto quanto eu curti ver e falar sobre os filmes.

Sem mais delongas, deixo aqui os comentários sobre os últimos quatro filmes que assisti.

Salvação (Guwon, 2020), de Lee Chang-moo:

O corpo de uma prostituta é encontrado em um rio depois de ela roubar 1 bilhão de won de seu cafetão. O detetive Seok-jae investiga o caso mesmo com o seu parceiro afirmando ter sido um suicídio. Mas as coisas se tornam um pouco maiores quando a investigação leva Seok-jae a uma misteriosa casa que serve como uma espécie de centro espiritual para seus residentes.

Apesar de o suposto assassinato ou suicídio abrir a narrativa deste Salvação, ele na verdade nem chega a ser o ponto principal da trama, sendo um ponto de partida que o roteiro às vezes parece esquecer. Mas a história não deixa de ser menos intrigante por isso, nos conduzindo por ambientes inquietantes e apresentando personagens amaldiçoados pela culpa. São detalhes que o diretor estreante Lee Chang-moo utiliza bem para falar da falsidade de certos negócios (ou instituições), que se aproveitam das crenças das pessoas e apertam suas fraquezas enquanto prometem recompensas enganosas.

Zumbis no Canavial: O Documentário (Zombies en el Cañaveral: El Documental, 2019), de Pablo Schembri:

Este documentário argentino trata de um assunto muito interessante. Em 1965, um filme de zumbi chamado “Zumbis no Canavial” foi realizado na província de Tucumán. O longa acabou se perdendo, impossibilitando muitas pessoas de assisti-lo, mas ainda assim deixou sua marca no cinema, originando um subgênero que se mantém de pé até hoje, mas cujo início nos acostumamos a creditar ao clássico A Noite dos Mortos-Vivos, de George A. Romero, que foi lançado três anos depois.

Bem, claro que se trata de um falso documentário, mas devo admitir que Zumbis no Canavial: O Documentário conta com um trabalho de pesquisa tão instigante e uma estética tão convincente que, pontualmente, me peguei acreditando no que era jogado na tela. E certamente isso faz parte da diversão que ele proporciona, sendo engraçado acompanhar também o sucesso e as influências que “Zumbis no Canavial” supostamente veio a ter internacionalmente, de forma que às vezes é um pouco triste que nada disso tenha acontecido.

Mas engana-se quem acha que não devemos levar o longa de Pablo Schembri a sério. Mesmo partindo de uma obra ficcional para conceber a narrativa, o diretor faz um belo resgate da história dos filmes de terror (há menções até ao nosso saudoso José Mojica Marins), além de explicar muito bem a relação do gênero com o período conservador e ditatorial que a Argentina viveu naquela época, algo que podemos estender para toda a América Latina. Assim, Zumbis no Canavial: O Documentário se revela um surpreendente falso documentário que consegue falar muitas verdades.

Barry Fritado (Fried Barry, 2020), de Ryan Kruger:

Se Sob a Pele ingerisse uma certa quantidade de entorpecentes, o resultado provavelmente seria algo como este Barry Fritado. A história dessa produção sul-africana gira em torno do personagem-título (interpretado por Gary Green), um viciado em drogas que em um dia qualquer é abduzido por uma nave extraterrestre. No processo, seu corpo é possuído por um alienígena que passa então a andar pelas ruas, vivendo a experiência terrestre com o que surge em seu caminho, sejam isso drogas, sexo ou problemas com figuras violentas.

E assim passamos a acompanhar uma jornada com boas doses de bizarrice e psicodelia, mesmo que durante boa parte do tempo o filme tenha um ritmo meio monótono e não impressione tanto. Mas o diretor Ryan Kruger merece créditos pelo tom mais sério que impõe na narrativa, ressaltando como o caminho percorrido pelo protagonista está longe de ser uma grande festa, tendo em vista o ambiente inóspito que a Terra é capaz de ser. E é impossível não destacar a atuação de Gary Green, que cria um protagonista curioso mesmo que quase não tenha diálogos, usando apenas suas expressões faciais e postura em cena.

Ausente (Poissa, 2019), de Arttu Haglund:

Como seria se pudéssemos nos teletransportar para longe de uma vida que não nos agrada? É dessa ideia que parte o finlandês Ausente. Aqui somos apresentados a Matti (Panu Tuomikko), que tem uma vida deprimida ao lado da esposa Teija (Eeva Putro) e da filha pequena Emma (Julia Hemmilä). Mas quando ele descobre que tem a habilidade de se teletransportar aleatoriamente para qualquer lugar, deixando sua esposa e filha sozinhas durante a maior parte do tempo, as coisas parecem ficar mais relaxadas.

Mas só parecem, já que teletransporte não é uma habilidade que apague sentimentos e responsabilidades, detalhes que ajudam a formar a base emocional da narrativa concebida por Arttu Haglund (estreante em longas-metragens). Matti não tem controle sobre o próprio poder, sumindo dos lugares quando menos espera, o que não deixa de lhe dar uma desculpa perfeita para justificar suas longas ausências, que gradual e naturalmente criam um distanciamento entre ele e a família (a montagem, aliás, se destaca pela forma como consegue simular o poder do protagonista através de cortes secos). E ainda que possamos antecipar algumas conclusões, o roteiro é hábil ao usar o teletransporte para desenvolver questões existenciais, mostrando as dificuldades do sujeito para achar seu lugar no mundo e como as consequências disso podem ser mais tristes que o imaginado.

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Para conferir as outras partes da cobertura do festival, é só clicar nos links abaixo.

XVI Fantaspoa - 1ª Parte

XVI Fantaspoa - 2ª Parte - Especial Nabwana IGG

XVI Fantaspoa - 3ª Parte

XVI Fantaspoa - 4ª Parte

XVI Fantaspoa - 5ª Parte

sábado, 1 de agosto de 2020

XVI Fantaspoa - 5ª Parte

Segue abaixo os comentários sobre mais quatro filmes conferidos nesse XVI Fantaspoa.

Butt Boy (2019), de Tyler Cornack:

Às vezes eu fico particularmente surpreso com as ideias malucas que ganham vida no cinema, como no caso deste Butt Boy. Aqui, Chip (vivido pelo próprio diretor Tyler Cornack) é um homem infeliz em seu casamento e longe de ser um herói para o filho. Seu maior prazer vem de uma habilidade incomum, que permite que ele enfie qualquer coisa em sua bunda (qualquer coisa mesmo!). Enquanto isso, o policial Russel Fox (Tyler Rice) começa a frequentar os Alcoólatras Anônimos, sendo apadrinhado por Chip. Mas os caminhos dos dois se cruzam com mais força quando uma criança desaparece na empresa onde Chip trabalha, um caso que cai nas mãos de Russel, que nem imagina a forma como seu parceiro pode estar envolvido na história.

A habilidade de Chip, obviamente, não poderia ser mais absurda. E isso nem chega a ser um problema do filme, sendo apenas algo que aceitamos dentro daquele universo. No entanto, Butt Boy se leva a sério demais para um longa que tem um elemento tão naturalmente risível no centro de sua história, de forma que mesmo algumas tentativas de humor soam um tanto deslocadas. É como se houvesse dois tons narrativos completamente distintos tentando formar uma narrativa coesa, alcançado resultados irregulares. Mas é um filme que certamente é difícil de esquecer, ainda que isso ocorra mais por se tratar de uma produção que não se vê todo dia do que propriamente por render uma experiência marcante.

Ghost Master (Gôsuto Masutâ, 2019), de Paul Young:

A exemplo de um dos meus favoritos deste Fantaspoa (o indiano RK/R Kay), Ghost Master é mais um longa do festival com uma história que envolve metalinguagem, mas infelizmente essa produção japonesa não se revela muito rica. No filme, o jovem Akira Kurosawa (Takahiro Miura) é um assistente de direção que faz parte da equipe de filmagens da adaptação de um mangá, algo que está saindo do controle. Akira, porém, tem o sonho de dirigir seu próprio filme, “Ghost Master”, cujo roteiro ganha vida de forma demoníaca e passa a causar terror e violência entre toda a equipe.

Além de a metalinguagem de Ghost Master ser desenvolvida de maneira óbvia, com o filme quase gritando para o espectador o que está fazendo na tela, as homenagens que o diretor Paul Young insere pontualmente a alguns cineastas clássicos se revelam muito pouco inspiradas. O filme, porém, merece alguns créditos pelos efeitos práticos nas cenas de violência, ainda que este aspecto não chegue a fazer com que a narrativa se torne mais instigante. Para completar, Ghost Master estica sua trama além do necessário, o que só aponta que ele não tem tanto a oferecer.

O Velhaco: O Filme (Vanamehe Film, 2019), de Oskar Lehemann e Mikk Mägi:

Animação estoniana feita em stop motion, O Velhaco: O Filme mostra um universo onde as pessoas tratam leite como uma espécie de dádiva, o que faz os fazendeiros que ordenham suas vacas bastante populares. Nesse contexto, conhecemos o Velhaco que dá título ao filme, fazendeiro que recebe seus três netos para passar o verão com ele. Mas quando sua valiosa vaca resolve fugir, o Velhaco e as crianças logo partem à procura dela, já que o animal irá explodir se ficar 24 horas sem ser ordenhado, causando um Lactocalipse.

Trata-se de um filme que parece fazer questão de ser uma bobagem, sendo que os diretores Oskar Lehemann e Mikk Mägi fazem isso funcionar a favor da narrativa durante boa parte do tempo, divertindo ao longo da jornada dos personagens. Há momentos que o longa até parece que não irá se resumir só a isso, como ao trazer o neto do Velhaco fazendo um discurso a favor dos animais, mostrando tanto quem ordenha a vaca quanto quem quer abatê-la como figuras que estão erradas na história, mas isso nunca é muito bem desenvolvido pelo roteiro. Mas apesar de divertir, O Velhaco: O Filme desaponta um pouco em seu clímax, cujas soluções para a trama não chegam a ser engraçadas como o caminho que nos trouxe até ali.

H0us3 (2018), de Manolo Munguia:

Enquanto eu assistia a este H0us3, foi difícil não lembrar do italiano Perfeitos Desconhecidos, já que ambos os longas mostram amigos de longa data se reunindo e tendo suas vidas impactadas pelo uso de tecnologias. Claro que, no fim, tratam-se de filmes bem diferentes, mas a dinâmica é parecida, com a diferença que H0us3 não chega nem perto de ter a mesma riqueza narrativa. A história mostra um grupo de amigos que se reúne em uma casa para passar o fim de semana. Todos lidam em maior ou menor grau com computadores, o que gera grande tensão quando um deles diz ter decriptado um arquivo ultrassecreto do governo.

O conceito que H0us3 traz em meio a sua trama (e que não comentarei em detalhes a fim de evitar possíveis spoilers) não deixa de ser intrigante, mas é uma pena que o filme desenvolva subestimando a inteligência do espectador. Mais de uma vez o longa coloca os personagens exibindo um prazer irritante ao explicarem certas teorias e paradoxos, como se isso fizesse o roteiro soar inteligente, ao passo que algumas paranoias que surgem pontualmente não poderiam ser mais risíveis. A impressão é que o diretor Manolo Munguia concebeu uma obra que acredita ser muita mais inteligente do que realmente é.

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Lembrando que o XVI Fantaspoa está acontecendo gratuitamente na plataforma de streaming Darkflix.

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quinta-feira, 30 de julho de 2020

XVI Fantaspoa - 4ª Parte

E vamos para os comentários sobre mais seis filmes desse XVI Fantaspoa.

Possesso (Pos Eso, 2014), de Samuel Ortí Martí:

Trini é uma famosa dançarina de flamenco que, após a morte do marido, decide se aposentar e apenas cuidar de seu filho Damián. O garoto, porém, está possuído por um demônio, tendo uma série de comportamentos bizarros e levando Trini e sua sogra à loucura, e o aventureiro padre Lenin pode ser o único capaz de salvá-lo.

Se a história de Possesso lembrou você de algum outro filme, isso não acontece por acaso. Afinal, essa animação espanhola feita em stop motion se revela uma verdadeira homenagem a obras clássicas de terror. Sua trama é basicamente um composto de O Exorcista e A Profecia, mas o diretor Samuel Ortí Martí não perde a oportunidade de largar referências também a produções como Poltergeist, Hellraiser e A Morte do Demônio (para citar apenas alguns), fazendo isso sempre de maneira orgânica e divertida.

Mas é bacana ver que Possesso não se agarra exclusivamente em homenagens para manter a narrativa de pé, cativando o espectador com seus personagens e aproveitando as possibilidades de sua animação para, pontualmente, criar sequências chocantemente engraçadas, como aquela envolvendo um programa de TV ou a outra em que vemos uma personagem fugindo de objetos caindo do céu. Certamente estamos falando de uma das produções mais divertidas presentes na programação do Fantaspoa deste ano, e considerando que o filme é de 2014 até lamento ter levado tanto tempo para saber de sua existência.

Tóxico (2020), de Ariel Martínez Herrera:

Não sei dizer quantos cineastas já lançaram um filme sobre uma pandemia exatamente quando o mundo está enfrentando uma, mas o argentino Ariel Martínez Herrera acabou se tornando um deles. Em Tóxico, Herrera mostra que o mundo está um verdadeiro caos devido a uma pandemia de insônia, algo que está levando as pessoas até a cometerem suicídio. Nesse contexto somos apresentados ao casal Augusto (Agustín Rittano) e Laura (Jazmín Stuart), que está fugindo desse caos rumo a um lugar mais isolado, usando um belo motorhome para se locomover.

Estruturado como um road movie, Tóxico não escapa de ser um tanto episódico durante o desenrolar de sua trama, além de ter alguns problemas de tom ao construir uma atmosfera de tensão, mas por vezes incluir elementos cômicos que destoam demais do restante da narrativa. Ainda assim, a inquietação do universo que Ariel Martínez Herrera concebe atrai a atenção do público, gerando cenas até angustiantes como aquela em que os protagonistas são parados por policiais.

Apesar de tratar de uma pandemia bem diferente da que estamos vivendo agora na vida real, Tóxico reflete bastante a nossa atual realidade, o que inevitavelmente aponta sua eficácia como retrato de uma pandemia. Para completar, o filme aproveita ainda para fazer comentários pertinentes sobre como o ser humano, com seu jeito autodestrutivo e irracional em meio ao caos, parece uma receita fadada ao fracasso.

James Contra o Seu Eu do Futuro (James vs. His Future Self, 2019), de Jeremy LaLonde:

Depois de eu ter começado o festival assistindo a um documentário sobre viagem no tempo, foi chegada a hora de conferir a comédia que está na programação e utiliza o conceito em sua história. Em James Contra o Seu Eu do Futuro, somos apresentados ao personagem-título (interpretado por Jonas Chernick), um cientista que dedica sua vida a tentar inventar a viagem no tempo. Mas isso acaba encontrando um grande obstáculo quando Jimmy, seu eu do futuro (vivido por Daniel Stern, que muitos devem lembrar como o Marv de Esqueceram de Mim), vem ao presente com o objetivo de impedi-lo de continuar com o projeto, já que isso lhe trará apenas solidão. Jimmy, então, passa a tentar fazer James valorizar mais as pessoas ao seu redor, como sua irmã Meredith (Tommie-Amber Price) e sua melhor amiga Courtney (Cleopatra Coleman).

O resultado é um longa que, além de divertir, se revela surpreendentemente doce não só no tratamento de seus personagens, mas também na maneira como mostra que, muitas vezes, desperdiçamos a vida ao não aproveitar direito o que ela tem de melhor. James Contra o Seu Eu do Futuro pode não apresentar nada de novo em sua história de viagem no tempo, mas conquista o espectador com certa facilidade, contando com um elenco carismático que nos mantêm interessados nos destinos de seus personagens.

Cabrito (2020), de Luciano de Azevedo:

Um dos filmes brasileiros que estão na programação, Cabrito basicamente mostra a formação de um psicopata. Dividido em três partes, o longa de Luciano de Azevedo conta a história de um homem cuja vida se resume a violência, brutalidade e desumanidade, frutos da criação de um pai completamente insano e uma mãe fanática religiosa.

O que chama a atenção logo de cara em Cabrito é sua atmosfera, cuja frieza e terror são bem estabelecidas tanto pela música quanto pelos tons sombrios da fotografia. Luciano de Azevedo constrói, essencialmente, um filme que causa estranheza e não economiza na violência ao contar a história de seu protagonista, que sofre evoluções que são bem coerentes considerando sua vivência. Depois de um tempo, porém, a vontade do diretor de montar uma narrativa chocante parece tão grande que o espectador fica meio anestesiado com tanta brutalidade, o que deixa tudo meio monótono e diminui impacto do filme no fim das contas.

Diabo Vermelho (Diablo Rojo PTY, 2020), de Sol Moreno:

Considerado o primeiro filme de terror da história do Panamá, Diabo Vermelho acompanha o motorista Miguel (Carlos Carrasco) e seu auxiliar Junito (Julian Urriola), que trabalham na condução de um ônibus do tipo “Diablo Rojo” (aliás, apenas a título de curiosidade, Carlos Carrasco interpretou um dos passageiros que ajudam Keanu Reeves no ônibus de Velocidade Máxima, de forma que sua presença aqui não deve ser por acaso). Mas depois que Miguel tem um encontro macabro, a dupla acaba se perdendo no meio de uma floresta misteriosa, encontrando perigos que vão desde bruxas a criaturas monstruosas, tendo apenas a ajuda de dois policiais e um padre para tentar achar o caminho de volta para casa.

Diabo Vermelho é um tanto desajeitado em alguns momentos (como na perseguição envolvendo o ônibus e os policiais) e encontra problemas para achar um equilíbrio no tom da narrativa, que varia entre o terror, o melodrama e a comédia. Mas ainda assim o longa da diretora Sol Moreno serve como um entretenimento eficaz durante boa parte do tempo, conseguindo até dar um toque folclórico aos seres que assombram os personagens. Além disso, é bacana ver a preferência de Moreno por efeitos práticos na hora de conceber cenas mais violentas, merecendo destaque especial um grande monstro que ganha mais proeminência no terceiro ato. No fim, fica a impressão de que os panamenhos não se saíram nada mal em sua primeira investida no terror.

Two Heads Creek (2019), de Jesse O’Brien:

Two Heads Creek conta a história de Norman (Jordan Waller) e Anna (Kathryn Wilder), irmãos gêmeos de descendência polonesa e que vivem na Inglaterra em tempos hostis de Brexit. Depois de perderem a mãe, eles descobrem que na verdade foram adotados e que sua mãe biológica pode estar na Austrália. Isso os leva até a pequena cidade australiana de Two Heads Creek, onde os estranhos habitantes parecem guardar um segredo sombrio.

Fica bem claro durante a trama a intenção do diretor Jesse O’Brien de fazer comentários satíricos sobre o Brexit, apontando de maneira divertida a xenofobia, o preconceito, a covardia e até a hipocrisia que movimentos como este representam. No entanto, a preocupação do longa com sua comicidade e sua violência absurda é tanta que ele não chega a desenvolver elementos mais humanos, o que faz a narrativa não ter peso algum mesmo quando ocorre momentos mais doces entre os personagens. Mesmo assim, Two Heads Creek ao menos causa um bom número de risos, rendendo uma experiência satisfatória.

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terça-feira, 28 de julho de 2020

XVI Fantaspoa - 3ª Parte

Dando continuidade a cobertura do XVI Fantaspoa, segue os comentários sobre mais cinco filmes.

RK/R Kay (2020), de Rajat Kapoor:

Como é bom ver uma ideia bacana ser executada tão bem, como ocorre neste indiano RK/R Kay. No filme escrito e dirigido por Rajat Kapoor, RK (interpretado pelo próprio cineasta, compartilhando suas iniciais) é um diretor de cinema em meio a produção de seu mais novo longa-metragem, no qual ele também interpreta o protagonista, Mahboob. No entanto, depois que as filmagens são completadas e o material vai para a sala de montagem, Mahboob foge do filme, desaparecendo de todos os negativos, o que faz com que RK e sua equipe se esforcem para convencê-lo a voltar para seu universo.

RK/R Kay já mostra na premissa toda sua metalinguagem, elemento que encanta, diverte e serve como uma base narrativa muito rica para a trama. Mas o que torna o filme um verdadeiro deleite é a forma como Rajat Kapoor usa essa metalinguagem para desenvolver a crise existencial do protagonista. Apesar de aparentemente ter tudo nada vida, RK é um homem infeliz, amargo e que não sabe nem dizer por que está realizando seu filme. É alguém bem diferente de Mahboob, que mesmo sendo uma criação fictícia do cineasta se revela um ser bem humorado, amoroso e que até se permite fazer planos, não querendo viver uma vida monótona. Basicamente, RK parece ter concebido Mahboob como a figura que ele próprio gostaria de ser, o que rende discussões interessantes e humanas.

Repleto de sacadas divertidíssimas devido a sua natureza metalinguística (o vilão que se mostra imprevisível porque, na verdade, teve seus movimentos improvisados por seu intérprete é particularmente genial), RK/R Kay falha apenas ao inserir de maneira um tanto óbvia e desajeitada uma reviravolta em seu final. Mas isso ainda não impede o filme de ser um dos melhores dessa edição do Fantaspoa.

Limbo (2020), de Tim Dünschede:

Filmado em um verdadeiro plano-sequência de quase 90 minutos (a exemplo de obras como Ainda Orangotangos e Victoria), Limbo nos apresenta a Ana Bergmann (Elisa Schlott), jovem que descobre um esquema de lavagem de dinheiro na empresa onde trabalha. Enquanto ela confronta seus superiores, acompanhamos um policial (Tilman Strauss) que está infiltrado na gangue de um criminoso a fim de derrubar os negócios de um gângster. E não demora muito até que as duas histórias se encontrem.

Por se tratar de um plano-sequência, é difícil não notar a grande coordenação do diretor Tim Dünschede e sua equipe para que tudo saia como planejado ao longo da trama. O trabalho feito nesse aspecto não só traz uma maior verossimilhança a narrativa, mas também mantém um tom constantemente inquietante graças às pequenas tremedeiras da câmera. Mas ainda que a execução do plano-sequência seja certeira, isso não impede o filme de ter alguns problemas de ritmo. Isso ocorre quando ele se vê obrigado a mostrar os personagens andando ou dirigindo até seus destinos, algo que se torna um tanto enfadonho principalmente quando nada está acontecendo na tela.

Mas a riqueza de Limbo, na verdade, está no fato de ele ser essencialmente uma história de luta entre idealismo e corrupção no mundo capitalista em que vivemos. Nisso, o roteiro traz boas discussões sobre como os poderosos enriquecem em cima dos mais vulneráveis, um esquema do qual vários outros se aproveitam ilegalmente. E é notável como figuras como o chefe de Ana falam com conformidade sobre o sistema do qual fazem parte (“Adapte-se ou morra”, falam em determinado momento), sendo que Tim Dünschede não deixa de exibir certo pessimismo frente a tudo isso, tendo em vista o sofrimento daqueles que lutam para fazer o certo mesmo com todos os obstáculos que enfrentam. Assim, Limbo consegue ser um feito tecnicamente admirável e emocionalmente envolvente do início ao fim.

Clarita (2019), de Roderick Cabrido:

Filme de terror produzido nas Filipinas, Clarita é situado em 1953 e mostra o padre Salvador (Ricky Davao) e seu auxiliar padre Benedicto (Arron Villaflor) sendo chamados para fazer um exorcismo na personagem-título (vivida por Jodi Sta. Maria), uma jovem que foi presa por prostituição, mas que a polícia acredita estar possuída por um demônio. Apesar de ter um ou outro momento inspirado, o longa infelizmente não tem nada de muito original, trazendo praticamente todos os clichês de filmes sobre exorcismo, de forma que às vezes ele parece um mero derivado de O Exorcista.

O filme se sai um pouco melhor quando o roteiro se concentra em desenvolver a história de sua personagem-título, ganhando pontos com cenas sensíveis como aquela na qual ela perde sua mãe. Isso faz até com que seja uma pena que o diretor Roderick Cabrido tenha como objetivo fazer um filme de terror, já que Clarita é muito falho nesse sentido, com o cineasta não conseguindo assustar ou criar uma atmosfera de tensão que percorra a narrativa.

O Guia VICE Para o Pé-Grande (The VICE Guide to Bigfoot, 2019), de Zach Lamplugh:

Falso documentário (ou mockumentary) que satiriza principalmente o jornalismo baseado em matérias sensacionalistas de clickbait, O Guia VICE Para o Pé-Grande nos apresenta a Brian, jovem jornalista que recebe a tarefa de investigar a existência do Pé-Grande, por mais cansado que esteja de não conseguir cobrir histórias importantes. Ao lado de seu produtor e operador de câmera, Zach, o rapaz se vê tendo que lidar com o estranho criptozoologista Jeff, que é fascinado pela criatura e guia a dupla pelas florestas. Mas nenhum deles imagina os perigos em que estão se metendo enquanto correm atrás de uma história que nem sabem se é verdadeira.

Mesmo sendo meio ilógico em alguns pontos de seu estilo documental (os personagens usam apenas uma câmera para trabalhar, mas há cenas que vemos por vários ângulos diferentes), o longa funciona relativamente bem como sátira, sabendo zoar um tipo de jornalismo que preza menos o conteúdo e mais os números que vai atrair com informações inúteis. Mas o que torna O Guia VICE Para o Pé-Grande um longa simpático é o carisma de seus personagens, que desenvolvem uma dinâmica divertida entre si, além de exibirem receios pessoais que ajudam a humanizá-los frente ao espectador (aliás, seguindo a ideia documental, o trio principal compartilha o nome com seus intérpretes, o que inclui o próprio diretor Zach Lamplugh no papel do operador de câmera). O filme acaba sendo uma experiência agradável, por mais que fique longe de surpreender com os eventuais rumos de sua história.

A Maldição de Valburga (The Curse of Valburga, 2020), de Tomaz Gorkic:

Adoro o subgênero dos filmes slasher, aquele que traz um grupo de personagens sendo perseguido e massacrado por um psicopata, mas este esloveno A Maldição de Valburga foi difícil de engolir. No filme, Marjan (Jurij Drevensek) chama seu irmão Bojan (Marko Mandic) para colocar em prática um plano para ganhar dinheiro fácil. O plano: montar um passeio por uma mansão que, supostamente, pertenceu ao primo do Conde Drácula. E eles até conseguem chamar a atenção com sua atração, mas logo encontram problemas, já que os visitantes passam a ser assassinados um a um.

O problema de A Maldição de Valburga não é nem o fato de apelar para várias convenções do gênero para sustentar a narrativa, mas sim que o diretor Tomaz Gorkic nos faz acompanhar um grupo de personagens insuportáveis, sendo até natural que torçamos para que todos morram de uma vez. Mas é difícil ficar satisfeito mesmo quando eles são atacados pelo misterioso assassino que os ronda pela mansão, já que as mortes ocorrem de maneira simplista e pouco criativa (a única exceção é a cena em que vemos uma “carne” ser amaciada). O trabalho de maquiagem nesses momentos até merece algum crédito, mas é uma pena que funcione a favor de um material tão pobre.

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Lembrando que o XVI Fantaspoa está acontecendo gratuitamente no streaming da Darkflix.


Abaixo deixo os links dos outros posts sobre essa edição do festival.


XVI Fantaspoa - 1ª Parte

XVI Fantaspoa - 2ª Parte - Especial Nabwana IGG

domingo, 26 de julho de 2020

XVI Fantaspoa - 2ª Parte - Especial Nabwana IGG

“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.

O lema do nosso grande Cinema Novo passou pela minha cabeça várias vezes enquanto eu assistia aos filmes do ugandense Isaac Godfrey Geoffrey Nabwana, mais conhecido como Nabwana IGG, cineasta que está sendo homenageado no XVI Fantaspoa. Com orçamentos quase nulos (nas informações do site IMDb, vi os números chegarem a 65 dólares), Nabwana já produziu dezenas de filmes de ação nos últimos 15 anos, tendo como cenário a favela de Wakaliga, onde mora e montou seu estúdio particular, Wakaliwood. Nesta edição do Fantaspoa, três filmes do cineasta foram colocados na programação, Quem Matou Capitão Alex?, Crazy World e Bad Black, e assistindo a eles fica claro que Nabwana não precisa de grandes caprichos para entreter o público.

Ao ver esses três longas, é difícil não pensar que eles parecem pertencer a um mesmo universo cinematográfico, o que é até inevitável considerando que eles foram todos feitos a partir dos mesmos recursos limitados. Dessa forma, esteticamente eles acabam sendo muito parecidos uns com os outros, ainda que contem histórias que são independentes umas das outras. E Nabwana não perde a chance de até brincar um pouco com isso, colocando várias referências entre suas obras. É algo que diverte e se revela um prato cheio para VJ Emmie, um video joker que fica fazendo comentários engraçados durante o desenrolar das histórias.

Aliás, eu já ia esquecendo de falar sobre o que são essas histórias. Em Quem Matou Capitão Alex? vemos Bruce U (o Bruce Lee ugandense, como é estabelecido) tentando descobrir quem matou seu irmão, Capitão Alex, cujo assassinato ocorreu quando este estava prestes a libertar a capital Kampala dos criminosos da Máfia dos Tigres. Já em Crazy World acompanhamos um pai em busca de seu filho, que foi sequestrado pela Máfia dos Tigres (de novo ela!) junto com outras crianças, o que o faz juntar forças com um ex-soldado que enlouqueceu após o sequestro de sua própria filha. E Bad Black segue a história da personagem-título, uma criança que se rebela contra o líder de uma quadrilha de tráfico infantil e, depois de adulta, se torna uma grande criminosa. Ao mesmo tempo ainda acompanhamos um médico americano que quer recuperar suas placas do exército, sendo que para isso ele é treinado por Wesley Snipes, uma criança mestre em kung fu.

Mas não podemos dizer que tais tramas são de suma importância para os filmes, sendo usadas mais como um ponto de partida para que Nabwana IGG possa colocar na tela as cenas de ação que imaginou. Com muitos “defeitos especiais”, Nabwana dá vida a tiroteios, cenas de luta, explosões e perseguições de carro que envolvem o público graças a diversão que proporcionam, sendo que elas têm clara influência de produções hollywoodianas que devem ter feito parte da formação do diretor. Na verdade, devo admitir que em determinados momentos eu fiquei um pouco emocionado assistindo aos filmes. Não porque estivesse ocorrendo alguma forte emoção na tela, mas porque a palavra-chave dos longas de Nabwana IGG é “entusiasmo”, aspecto que pode ser visto em cada frame que o diretor concebe com sua câmera. Fazer cinema é uma coisa difícil em qualquer instância, de forma que acaba sendo legal ver Nabwana conseguir executar as cenas que idealizou mesmo sem os recursos para torná-las perfeitas.

As imperfeições das obras de Nabwana IGG não deixam de ser admiráveis considerando o contexto em que são produzidas. Fazendo um cinema “na cara e na coragem”, o cineasta cria experiências inesquecíveis do seu próprio jeito, e o valor artístico dos resultados disso não faz feio frente ao das produções de orçamentos milionários que nos acostumados a assistir.

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Lembrando que o XVI Fantaspoa está acontecendo gratuitamente no streaming da Darkflix

Este é o segundo post comentando essa edição do festival, mas se quiser ver o primeiro é só clicar aqui.

sábado, 25 de julho de 2020

XVI Fantaspoa - 1ª Parte

Seja por questões pessoais ou financeiras, ir a vários festivais de cinema infelizmente ainda não é um hábito que consegui cultivar ao longo desses anos como cinéfilo e crítico. No entanto, se eu tivesse cultivado isso, o Fantaspoa certamente ainda seria um dos festivais que eu mais teria prazer de frequentar. Não só pela seleção de filmes, mas também pela atmosfera bacana das sessões e das atrações que ocorrem ao longo dos dias de festival. Estamos falando de um evento que, dentre tantas coisas, trouxe o mestre Roger Corman a Porto Alegre, possibilitando que várias pessoas assistissem a uma Masterclass ministrada por ele. E desde então há rumores de que nunca mais lavei a mão que usei para cumprimentar o lendário cineasta (mas são apenas rumores).

Depois de uma bem sucedida campanha de financiamento coletivo, o Fantaspoa chega agora a sua 16ª edição, que está sendo lançada para o público de maneira online e gratuita através da plataforma de streaming Darkflix. Afinal, a pandemia do novo coronavírus mudou os planos do mundo inteiro, impedindo que o festival ocorresse presencialmente.

Tendo em vista a acessibilidade que o festival terá esse ano, pensei em tentar fazer algo um pouco maior do que fiz em outras edições, quando vi e comentei poucos filmes. Sendo assim, me esforçarei para ver o maior número possível de longas e comentá-los aqui no Linguagem Cinéfila. Espero me sair bem nesse pequeno compromisso e que vocês gostem.

O XVI Fantaspoa começou ontem, dia 24, e irá até o dia 02 de agosto. Abaixo estão os comentários sobre os três primeiros filmes que conferi: Uma Breve História da Viagem no Tempo, Pornô e O Bando.

Uma Breve História da Viagem no Tempo (A Brief History of Time Travel, 2018), de Gisella Bustillos:

O título já define exatamente o que é esse documentário. Com pouco mais de uma hora de duração, Uma Breve História da Viagem no Tempo discute com propriedade o conceito que tanto já vimos em obras de ficção científica. Trazendo entrevistas com físicos, líderes religiosos e autores que colocam (ou já colocaram) a viagem no tempo no centro de seus trabalhos, o filme de Gisella Bustillos mostra como essa ideia não só estimula a imaginação (temos uma série de produções literárias e audiovisuais resultantes disso), mas também desafia a inteligência de pessoas que acreditam que ela é possível.

Assim, é interessante notar o entusiasmo de muitos ao discutirem diversas teorias científicas, comentando pontos que talvez possam viabilizar a viagem no tempo em algum momento, sendo que eles também não esquecem de discutir motivos para a realização de uma viagem e suas possíveis consequências. Por enquanto, tudo isso não passa de ideias em um papel, mas se algum dia a viagem no tempo ocorrer espero que tenhamos aprendido algo com obras como De Volta Para o Futuro, A Máquina do Tempo e Um Século em 43 Minutos.

Pornô (Porno, 2019), de Kerola Racela:

Situado em uma pequena cidade cristã dos Estados Unidos, Pornô se passa no início dos anos 1990 e foca um grupo de jovens que trabalha em um cinema local. Na noite de sua sessão de cinema particular, eles encontram um bizarro rolo de filme nos fundos do lugar, não imaginando que estão liberando um demônio sexual ao exibirem o achado na telona. E assim tem início uma longa e estranha noite de assombração, com o filme de certa forma aspirando ser um terror cômico ao estilo de A Morte do Demônio, trocando a cabana isolada por um cinema.

Inicialmente, o filme de Keola Racela (estreante em longas-metragens) demora um pouco para engrenar. Mas a narrativa cresce à medida que o elenco desenvolve uma dinâmica divertida entre seus personagens, ao passo que o roteiro é hábil ao utilizar o demônio para expor a hipocrisia de certas figuras que pregam ideias conservadoras de uma religião (inclusive inibindo instintos naturais do ser humano), mas que agem de maneira diferente em sua intimidade. Com uma violência bizarramente gráfica em determinados momentos (quem assistir ao filme vai entender exatamente do que estou falando), Pornô pode não deixar grandes marcas no espectador, mas ao menos alcança resultados razoáveis dentro de sua proposta.

O Bando (La Jauría, 2019), de C. Martín Ferrera:

O que o diretor C. Martín Ferrera realiza neste O Bando é um filme que faz muito com pouco. Logo de cara, acordamos ao lado de Iván (Adam Quintero), sujeito que está algemado em um carro no meio do nada e junto de outros três homens desacordados. À medida que estes recobram os sentidos, o grupo passa a tentar descobrir o que está acontecendo e quem os colocou ali, algo que não vem sem uma ameaça que parece rondar o veículo em que eles estão.

Ferrera concebe uma narrativa bastante simples, conseguindo criar tensão tanto pela situação em que os personagens se encontram quanto pela desconfiança que surge naturalmente entre eles. E o fato de a maior parte da trama se passar em um local pequeno e isolado contribui ainda mais para a inquietação imposta pelo diretor, que assim aposta em planos mais fechados que dão um tom de claustrofobia ideal para a narrativa. São aspectos que mantêm o público envolvido na história e se potencializam quando outra personagem entra em cena, pontuando um filme que instiga com cada passo que dá em direção a sua resolução.

sábado, 18 de julho de 2020

Jasão e os Argonautas

Alguns filmes passam a impressão de que poderiam ser melhores caso tivessem alguns minutos a mais. Foi um pensamento que tive ao final de Jasão e os Argonautas, clássico de 1963.

Levando às telas o épico poema grego “As Argonautas”, de Apolónio de Rodes, o filme conta a história de Jasão (interpretado por Todd Armstrong), jovem que pretende retornar a região de Tessália e assumir o reino que lhe pertence por direito, destronando assim o cruel Pélias (Douglas Wilmer), o homem que matou sua família. Para alcançar esse objetivo, ele recusa a ajuda dos Deuses e reúne uma tripulação na embarcação conhecida como Argo, passando por uma série de perigos na busca pelo poderoso Velo de Ouro.

Jasão e os Argonautas é muito mais lembrado por conta do trabalho do mago dos efeitos visuais Ray Harryhausen, que trouxe para as sequências de ação sua técnica de Dynamation, que combinava cenas em live action com modelos animados em stop motion. E assistindo a obra fica muito claro o porquê de isso sempre ser mencionado no que se refere a ela. Afinal, essas sequências concebidas por Harryhausen são capazes de encantar o espectador mesmo sessenta anos depois, contribuindo não só para a diversão da narrativa, mas também para a realidade daquilo que estamos vendo. Se figuras como a estátua gigante de Talos, a Hidra ou os esqueletos que lutam com o protagonista na sequência final fossem resultado de computação gráfica, é provável que não parecessem tão reais quanto parecem aqui.

O que vemos em Jasão e os Argonautas é um filme que preza muito pelo espírito aventureiro, algo que ajuda a manter o espectador envolvido na jornada dos personagens mesmo que o roteiro aposte em uma estrutura episódica para desenvolver a história. É uma pena, porém, que o longa chegue ao final sem concluir todos os pontos de sua trama, optando por um gancho narrativo que nos levaria a uma continuação que, infelizmente, nunca foi produzida, o que deixa uma sensação de que faltou alguma coisa. Por sorte, independentemente disso, Jasão e os Argonautas conta com uma parcela de méritos que ainda o fazem render um entretenimento bacana.

No momento, Jasão e os Argonautas está disponível na Netflix.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

O Diabo Veste Azul

Revisitar personagens é um costume que Denzel Washington quase não cultivou ao longo de sua brilhante carreira. Seja por decisão própria ou por não ter tido oportunidades para isso, Washington acabou montando seu caminho investindo seus talentos em coisas novas (por enquanto, a única continuação em seu currículo é O Protetor 2). Porém, há certos personagens que se mostram tão interessantes em suas mãos que acabam deixando uma vontade de vê-los mais vezes. É o que ocorre, por exemplo, com o Ezekiel Rawlins deste O Diabo Veste Azul, de 1995.

Baseado no primeiro livro da série escrita por Walter Mosley, o filme se passa na Los Angeles do fim dos anos 40, quando o veterano de guerra Ezekiel, também conhecido como Easy, está desempregado e à procura de dinheiro. É quando DeWitt Albright (Tom Sizemore), surge repentinamente em seu caminho, querendo contratá-lo para encontrar Daphne Monet (Jennifer Beals), uma mulher branca que pode estar se escondendo na comunidade afro-americana. Easy aceita o serviço, sem imaginar que está entrando em uma história complexa e que envolve figuras poderosas da cidade.

O Diabo Veste Azul é um neo-noir clássico, que faz jus às melhores histórias de detetive, com sua trama parecendo uma bola de neve ao gradualmente desenvolver vários pontos narrativos ao longo da investigação de Easy, como um verdadeiro quebra-cabeça. O personagem, aliás, conquista o espectador com sua inteligência e sua cautela, características que o tornam competente em seu serviço apesar de nunca ter feito algo do tipo antes. E é claro que muito do nosso envolvimento emocional com ele se deve também a Denzel Washington, que traz para o papel seu carisma e sua presença magnética, contribuindo para que fiquemos investidos na narrativa do início ao fim. Além de Washington, vale destacar também os trabalhos de Tom Sizemore, Jennifer Beals e Don Cheadle, sendo que este último praticamente rouba o filme interpretando o impulsivo Mouse, um velho conhecido do protagonista (não à toa, Cheadle foi indicado a alguns prêmios na época mesmo tendo poucos minutos de tela).

Acompanhar o desenrolar desses pontos talvez fosse suficiente para fazer de O Diabo Veste Azul um filme satisfatório, mas o diretor-roteirista Carl Franklin ainda mostra ter outros objetivos. Franklin é hábil ao usar a história de detetive que tem em mãos para desenvolver temas sociais relevantes, principalmente no que diz respeito a racismo e as relações raciais na sociedade (e acho que é bom destacar aqui a importância de se ter um realizador negro no comando da narrativa). É algo que podemos ver quando Easy é intimado violentamente por policiais ou no relacionamento de um casal interracial, que tem receio do que as pessoas pensarão de sua união. Em elementos como esses, O Diabo Veste Azul trata com força a imoralidade de um mundo segregacionista controlado majoritariamente pelos brancos, algo que resulta em uma série de injustiças. E considerando que o filme se passa nos anos 40, foi lançado há 25 anos e ainda assim se mostra atual em seus temas revela como ainda temos muito a evoluir como sociedade.

Infelizmente, O Diabo Veste Azul fracassou nas bilheterias, acabando com quaisquer planos de trazer Denzel Washington em outras adaptações de livros protagonizados por Easy Rawlins. Mas isso nada tem a ver com a qualidade do filme, que conseguiu deixar sua marca como um neo-noir de destaque.

Nota:



segunda-feira, 6 de julho de 2020

Séries: Staged

Os tempos têm sido difíceis. Como todos sabem, o mundo enfrenta a maior pandemia dos últimos cem anos, milhares de pessoas têm morrido todos os dias (fora os milhões que sofrem por essas perdas) e quem tem o mínimo de responsabilidade e empatia procura, dentro de suas possibilidades, ficar em casa para não contribuir para a proliferação do novo coronavírus. Com isso, muitas coisas acabaram precisando parar, o que inclui filmagens de séries de TV. Mas há quem consiga driblar as limitações do isolamento social a fim de se manterem produtivos, divertindo outras pessoas no processo. O diretor-roteirista Simon Evans e os atores David Tennant e Michael Sheen fazem parte desse grupo, tendo aproveitado o fato de estarem cada um em suas casas para produzir Staged, minissérie de seis episódios exibida pelo canal britânico BBC.

Staged traz Sheen e Tennant interpretando versões ficcionais de si mesmos em meio ao período de isolamento causado pela pandemia do coronavírus. Antes disso, porém, eles haviam combinado com Simon Evans de levar aos palcos a peça “Seis Personagens à Procura de um Autor”, do italiano Luigi Pirandello. Mas ainda que a produção tenha tido que ser adiada por conta da pandemia, o trio resolve ensaiar tudo através de chamadas de vídeo, o que não ocorre como planejado (para a nossa diversão).


Usando a tecnologia das chamadas de vídeo para formar quase toda a narrativa, a série usa a peça de Luigi Pirandello apenas como uma desculpa para colocar seus atores em movimento, já que no fim ela acaba pouco importando. A ideia de Simon Evans (que escreveu e dirigiu todos os episódios) é mostrar seus protagonistas entrando em conflito constantemente enquanto lidam com o tédio e a falta de foco, coisas que grande parte das pessoas tem enfrentado nesse período de isolamento.

Tendo isso em vista, o fato de David Tennant e Michael Sheen serem amigos (vale lembrar que eles estrelam a série Good Omens, da Amazon Prime Vídeo) acaba sendo vital para o sucesso de Staged. É uma relação que traz muita espontaneidade para cada cena, além de abrir espaço para que eles possam implicar um com o outro sempre de maneira divertida, com eles encontrando piadas em detalhes que podem soar pífios para o público, mas que são de suma importância para ambos e, por isso, naturalmente engraçados. Aliás, os atores claramente se divertem criando versões caricaturais de si próprios. Se Sheen surge como um ator um pouco mais sério e que precisa ter seu ego alimentado, Tennant é a parte excêntrica da dupla, características que se opõem, mas geram uma ótima química e um hilário choque de personalidades. Isso vale não só para a dinâmica entre eles, mas também quando envolve suas esposas, Anna Lundberg e Georgia Moffett, e o próprio diretor Simon Evans, que arranca sua parcela de risadas do espectador ao agir como um realizador inexperiente e de competência bastante limitada.

Contando ainda com participações mais do que especiais de atores de renome, cujo talento só agrega para a diversão proporcionada pela narrativa (não revelarei quem eles são para não estragar possíveis surpresas), Staged é um verdadeiro deleite para o espectador. Com cada um dos seis episódios durando cerca de quinze minutos, é uma minissérie que serve como uma distração breve, mas muito prazerosa em meio aos tempos que vivemos.