quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

A Baleia

Os filmes de Darren Aronofsky não são exatamente conhecidos como experiências agradáveis para o espectador. O diretor, na verdade, criou um hábito de nos apresentar a personagens e, a partir daí, nos conduzir pela jornada de autodestruição deles, como em Pi, Réquiem Para um Sonho, O Lutador e Cisne Negro. São obras de grande densidade dramática e capazes de nos deixar angustiados por sabermos o que determinados passos representam na vida daqueles indivíduos. Este novo trabalho de Aronofsky, A Baleia, acaba sendo mais um exemplo desse seu hábito, além de colocar Brendan Fraser de volta aos holofotes após um bom tempo.

Escrito por Samuel D. Hunter a partir de sua própria peça de teatro, A Baleia nos apresenta a Charlie (Fraser), um professor universitário que perdeu o namorado há algum tempo e agora vive sob os cuidados da amiga enfermeira Liz (Hong Chau). Tais cuidados são necessários porque Charlie sofre com obesidade mórbida, vivendo em reclusão em seu pequeno apartamento. É então que ele resolve tentar se reconectar com sua filha adolescente, Ellie (Sadie Sink), procurando resolver antigas mágoas.

Desde o princípio as origens teatrais do texto de Samuel D. Hunter podem ser notadas, seja por diálogos expositivos que estabelecem detalhes do passado dos personagens ou pelo fato de o filme se situar quase todo em um único cenário (o apartamento de Charlie). Mas este ponto não chega a limitar a narrativa, com Darren Aronofsky e seu habitual diretor de fotografia Matthew Libatique optando por conceber o filme na tela com uma razão de aspecto de 1.33:1 (o clássico quadrado 4:3), que contribui para tornar opressivo o universo do protagonista, algo realçado também pela iluminação mais escura que toma seu apartamento.

Esse visual faz com que A Baleia, por vezes, pareça um filme de terror, o que não deixa de ser apropriado se pensarmos que Charlie sofre de uma espécie de maldição. Mas se engana quem acha que a maldição a qual me refiro é o estado físico e clínico do personagem, já que sua obesidade e compulsão alimentar parecem ser os resultados desta maldição. O problema de Charlie, na verdade, é pensar muito dos outros e muito pouco de si próprio. Temos aqui um personagem que não consegue evitar de pensar o melhor das pessoas, acreditando constantemente que a humanidade tem potencial para coisas maravilhosas. Não é à toa que logo nos primeiros minutos vemos ele dando uma aula (via videochamada) em que procura ajudar seus alunos a se expressarem melhor naquilo que escrevem, idealizando que eles são melhores do que imaginam. Mas ele não inclui a si próprio nessa visão de mundo. “Quem iria me querer como parte de sua vida?”, diz ele em determinado momento. E mais uma vez, não é à toa que sua câmera se mantém desligada durante suas aulas. Ao lidar com esses elementos, o roteiro naturalmente cria um embate de ideias que encontra grande peso dramático no protagonista e ressoa nos outros personagens, principalmente Liz e o jovem missionário Thomas (Ty Simpkins).


Mas boa parte do porquê de A Baleia envolver o espectador e fazê-lo se importar com seu protagonista tem nome e sobrenome: Brendan Fraser. Ator que passou anos relegado a projetos duvidosos até ter a carreira revitalizada recentemente, Fraser tem aqui uma oportunidade ímpar de brilhar e não decepciona. Por trás do excelente trabalho de maquiagem necessário para compor Charlie, o ator cria um personagem quebrado por arrependimentos e por um luto constante, que se entrega a compulsão alimentar como se acreditasse que esta é a punição que merece, seja pelo que já viveu e sofreu ou por quem é. Trata-se de um homem que está longe de ser perfeito, mas que tem também muito da honestidade que procura ver nas pessoas, e Fraser preenche com humanidade cada fala e movimento do personagem, tendo ainda uma ótima dinâmica com a sempre excelente Hong Chau, que faz de Liz uma figura que há muito já deixou de tentar evitar que o amigo se destrua, cuidando dele dentro do que pode e lhe servindo como única base de afeto. E enquanto Sadie Sink e Ty Simpkins são eficazes nos papeis de Ellie e Thomas, Samantha Morton se destaca mesmo com poucos minutos em cena, exibindo uma bela sensibilidade como Mary, a ex-esposa de Charlie.

A Baleia pode ser uma experiência triste e por vezes angustiante, mas se isso ocorre é porque Darren Aronofsky realiza aqui uma obra que transpira empatia por seu protagonista e pelas figuras ao redor dele, o que é algo bastante recompensador de ver.

Nota:



quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Batem à Porta

Apesar de muitas vezes criarmos expectativas, a verdade é que é difícil saber o que esperar de uma obra de arte antes de conferi-la, principalmente se pensarmos que quase todo artista tem altos e baixos na carreira. Com um diretor como M. Night Shyamalan, essa incógnita talvez surja com mais força a cada obra que ele lança. Afinal, o que veremos será algo do calibre de O Sexto Sentido e Corpo Fechado (seus dois grandes filmes) ou outra bomba como Fim dos Tempos, Depois da Terra, Fragmentado, Tempo e outros?

Baseado no livro de Paul Tremblay, este Batem à Porta acompanha a família formada pelo casal Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) e sua pequena Wen (Kristen Cui, adorável), que estão de férias em uma cabana. É quando eles são abordados por quatro indivíduos que pretendem invadir o local de qualquer forma e confrontá-los. Eles são Leonard (Dave Bautista), Sabrina (Nikki Amuka-Bird), Adriane (Abby Quinn) e Redmond (Rupert Grint), pessoas aparentemente comuns, mas que estão ali para fazer o possível para que aquela família sacrifique um de seus membros e, segundo eles, salve o resto da humanidade do apocalipse.

Por puro acaso, no dia anterior à sessão de Batem à Porta, eu conferi O Sacrifício do Cervo Sagrado, do sempre excelente Yorgos Lanthimos. E acaba sendo praticamente impossível não fazer uma comparação entre as duas produções, considerando que ambas contam histórias que colocam seres humanos recebendo a tarefa de sacrificar um ente querido em prol de algo maior. Mas se Lanthimos montava uma narrativa inquietante a partir da frieza dos personagens e de um contexto mais intimista para falar da natureza humana, Shyamalan constrói Batem à Porta lidando com ideias bíblicas que nos levam a discussões diferentes, onde algo mais amplo parece estar em jogo.


É uma pena, porém, que tais discussões não fujam muito do óbvio. Estariam Leonard e companhia acreditando em algo verdadeiro? Ou são apenas malucos conspiracionistas? E independentemente da resposta dessas questões, como atender o pedido de sacrifício para salvar a humanidade? Aliás, seria a humanidade digna de salvação? É com questões como essas que o roteiro escrito por Shyamalan e pela dupla Steve Desmond e Michael Sherman busca fomentar reflexões ao longo da projeção, mas elas não saem muito do lugar-comum ou ganham grande profundidade.

Mesmo assim, é relativamente interessante acompanhar o conflito entre as crenças do grupo invasor e o ceticismo da família, com Shyamalan conseguindo construir uma atmosfera de tensão entre os personagens na cabana, merecendo destaque o fato de o diretor manter a câmera muitas vezes próxima dos rostos dos atores, tirando espaço do cenário e tornando-o mais opressivo no processo. Contribui para essa inquietação também algumas atuações do elenco, principalmente Dave Bautista, que chama a atenção ao fazer de Leonard uma figura pacata e que mantém uma constante lamentação em seu tom de voz, aspectos que criam um contraste eficaz com seu físico imponente e ameaçador. E se Ben Aldridge mostra segurança ao encarnar a convicção de Andrew, Jonathan Groff é eficiente ao fazer de Eric um contraponto mais influenciável. Já Nikki Amuka-Bird, Abby Quinn e Rupert Grint pouco podem fazer com personagens essencialmente unidimensionais.


Mas se ao longo da narrativa Shyamalan cria alguma tensão, esta é quebrada sempre que o diretor insere flashbacks da vida de Eric e Andrew, mostrando compromissos que eles fizeram um com o outro ou como que um deles aprendeu a lutar. Mas esses são detalhes que não acrescentam nada de importante para a história, servindo apenas para tornar irregular o ritmo do filme. Além disso, apesar de a natureza bíblica das ideias do roteiro ser clara desde o princípio, Shyamalan parece não confiar na inteligência do espectador, resolvendo trazer explicações no terceiro ato que apenas martelam o óbvio e nos fazem revirar os olhos. Como se não bastasse, a resolução do filme além de não surpreender também soa um tanto anticlimática.

Talvez um elogio que eu possa fazer para Batem à Porta é que M. Night Shyamalan já fez filmes muito piores. O que não quer dizer muito levando em conta que ele também já fez filmes infinitamente melhores.

Nota: