domingo, 29 de janeiro de 2023

Os Banshees de Inisherin

Desde sua estreia como diretor há quase 20 anos no curta Six Shooter, Martin McDonagh tem se revelado um nome interessantíssimo de se acompanhar, mostrando ser um daqueles artistas capazes de criar dramas e personagens incrivelmente densos sem abrir mão de seu (muitas vezes ácido) senso de humor. Isso não é diferente neste Os Banshees de Inisherin, o quarto longa-metragem comandado por ele. Mas mesmo causando risos pontualmente, a impressão que este novo trabalho de McDonagh passa é de que se trata de sua obra mais triste até o momento, explorando a fragilidade das relações humanas e como estas movem a nossa existência.

Escrito pelo próprio McDonagh, Os Banshees de Inisherin se passa no início dos anos 1920 e traz Colin Farrell e Brendan Gleeson (parceiros habituais do diretor) nos respectivos papeis de Pádraic Súilleabháin e Colm Doherty, amigos de longa data e que vivem na ilha ficcional de Inisherin, situada próxima à Irlanda. Enquanto o primeiro é um fazendeiro que leva uma vida pacata ao lado da irmã, Siobhán (Kerry Condon), o segundo é um músico preocupado em deixar um legado. É então que Colm de um dia para o outro decide encerrar a amizade sem motivo aparente, algo que faz a vida de Pádraic virar de cabeça para baixo e impacta a vida de ambos.

E assim tem início um conflito que gera uma série de mágoas e ganha proporções cada vez maiores. Não é à toa, por sinal, que Martin McDonagh situa o filme em meio a guerra civil na Irlanda, já que assim ele pode fazer um paralelo entre as duas coisas. Claro que o tamanho de uma guerra em si é muito maior, mas isso não faz a nova relação entre Pádraic e Colm soar menos dolorosa, já que naquela pequena região o conflito entre esses dois homens é uma coisa grande que os machuca e ganha a atenção dos outros habitantes. Além disso, o diretor conduz a narrativa com sensibilidade, tendo plena noção dos sentimentos de seus personagens, sendo interessante ver ao longo do filme como, apesar dos pesares, tanto Colm quanto Pádraic mantêm algum respeito e consideração um pelo outro, o que ajuda a humaniza-los.

As atuações de Colin Farrell e Brendan Gleeson também são peças-chave para que nos conectemos com os personagens, performances estas que já se colocam entre as melhores de suas respectivas carreiras. Farrell, um ator que sempre achei subestimado, aqui faz de Pádraic um homem despreocupado e até ingênuo, que se mostra bastante conformado com a vida que leva e cuja doçura podemos ver não só em suas tentativas de falar com Colm, mas também nas relações que tem com Siobhán e com sua jumentinha Jenny, de forma que podemos afirmar que ambas sintetizam a humanidade do sujeito. Por conta disso, é justamente a jornada dele que acaba provando ser a mais triste de acompanhar. Brendan Gleeson por sua vez tem um personagem que talvez pudesse soar antipático nas mãos de um ator menos talentoso. Nas mãos dele, porém, Colm até pode ser um homem mais duro, mas nunca é insensível, de maneira que por mais drástico que ele seja com Pádraic, ainda assim é possível compreender sua posição. Mas o brilho do filme não fica restrito apenas a dupla principal, já que a excelente Kerry Condon se destaca ao viver Siobhán como uma mulher sonhadora, independente e cheia de ternura, sendo interessante notar que ela é a única personagem do filme que aparece vestindo roupas com cores quentes, o que reflete seu calor humano e a distingue dos habitantes que vivem sem perspectivas em Inisherin. Enquanto isso, Barry Kheogan rouba todas suas cenas como o jovem Dominic, sendo responsável por boa parte dos risos proporcionados pelo filme e exibindo uma excentricidade que parece mascarar uma clara vulnerabilidade.

Essencialmente, Os Banshees de Inisherin usa seu conflito central para discutir com propriedade aspectos naturais do ser humano. Frente a finitude da vida, cada um se preocupa de uma maneira com o quanto quer aproveitar essa existência e escrever uma história marcante. E assim como diversos excessos inesperados preenchem a relação de Pádraic e Colm, é inimaginável que tipo de efeito as histórias que escrevemos podem ter umas nas outras, ainda mais em um mundo no qual precisamos conviver uns com os outros.

Nota:

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Alerta Máximo

Durante a sessão de Alerta Máximo, novo trabalho protagonizado por Gerard Butler, é difícil não ter a sensação de que já vimos esse filme em algum lugar. Roteirizado por Charles Cumming e J.P. David, o longa traz Butler no papel do piloto Brodie Torrance, que está escalado para realizar um voo para Tóquio no Ano Novo, levando um grupo pequeno de passageiros e não vendo a hora de encerrar a jornada para poder passar o fim de ano com sua filha. Entre os passageiros está Louis Gaspare (Mike Coulter), um preso que está sendo extraditado depois de anos vivendo como fugitivo. Durante o voo, porém, a aeronave sofre danos por conta de uma forte tempestade, obrigando Torrance a pousar no primeiro pedaço de terra firme que surge em seu caminho. Para o azar do piloto, o local encontrado é uma ilha comandada por milicianos ao sul das Filipinas, e ele se vê tendo que se unir a Gaspare para salvar a si próprio e aos passageiros enquanto eles todos não são encontrados e resgatados.

A sensação de familiaridade do longa vem de muitos elementos. A começar por sua busca por ser um filme de ação com toques de luta pela sobrevivência, algo que basicamente o faz ser uma espécie de mistura cujos ingredientes foram obras como Força Aérea Um, Turbulência e O Voo da Fênix, com o roteiro não conseguindo desenvolver algum frescor no meio disso. Isso serve também para os personagens, que quando desenvolvidos trazem dramas ou histórias pessoais bastante batidas. E quando falo desse desenvolvimento de personagens, isso se refere exclusivamente a Torrance e Gaspare, já que o resto dos passageiros e os vilões são figuras por vezes irritantemente unidimensionais e estereotipadas. Em determinado momento, os vilões só faltam dizer que são maus apenas porque são (e gostam de ser) maus, enquanto os passageiros se revelam do tipo que não fariam falta caso tivessem morrido durante a tensão no avião.


Mas Alerta Máximo provavelmente nem foi produzido com o intuito de fazer coisas diferentes com suas referências, querendo ser apenas um filme de ação que entretenha. Nesse sentido, o diretor Jean-François Richet (que lembro do bom remake de Assalto ao 13º DP e do mediano Herança de Sangue, com Mel Gibson) faz um trabalho eficaz na condução da narrativa, de forma que mesmo com o roteiro irregular o longa nunca chega a ser uma experiência chata de se acompanhar, prendendo a atenção em suas sequências de ação. Há uma cena em particular que se destaca ao trazer uma luta filmada em um longo plano sem cortes aparentes, mostrando de maneira bem crua os esforços dos personagens para acabar um com o outro. Além disso, Gerard Butler e Mike Coulter exibem carisma interpretando Torrance e Gaspare, conseguindo ainda criar entre os personagens uma dinâmica que torna possível torcer para que eles tenham algum sucesso em seus objetivos.

Tendo em vista que o astro Gerard Butler com alguma frequência protagoniza bombas como Deuses do Egito e Tempestade, talvez possamos dizer que algo relativamente eficiente como Alerta Máximo seja lucro. Trata-se de um clássico filme que chega ao fim deixando uma sensação de que deu para o gasto.


Nota:

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

M3gan

Se tem algo que tecnologia vem fazendo nos últimos tempos é desenvolver produtos que falam diretamente com a comodidade e, por tabela, com a preguiça do ser humano. É como se qualquer coisa que faça com que não precisemos levantar das nossas cadeiras fosse válida. É mais ou menos a partir dessa ideia que este terror M3gan se constrói, pegando conceitos que já vimos outras vezes quando falamos de inteligência artificial e criando terror em cima da relação entre humanos e tecnologia.

Dirigido por Gerard Johnstone e escrito por Akela Cooper (que roteirizou o ótimo Maligno) a partir de um argumento concebido por ela e James Wan (por sua vez, o diretor de Maligno), M3gan mostra Gemma (Allison Williams) se tornando responsável por sua sobrinha Cady (Violet McGraw) depois que esta perde os pais em um acidente. Gemma trabalha como engenheira em uma empresa de brinquedos, tentando agora desenvolver o projeto de “M3gan”, uma boneca com inteligência artificial capaz de interagir com a criança com quem se conecta, suprindo quaisquer necessidades e cuidando de dores físicas ou emocionais. Com isso em mente, Gemma decide testar um protótipo do brinquedo com sua sobrinha, não imaginando que isso pode ser prejudicial e até mesmo letal.

Em sua base, M3gan lembra imediatamente obras como Brinquedo Assassino e até a aventura Pequenos Guerreiros, que Joe Dante dirigiu nos anos 1990. Mas por trazer um contexto mais moderno, o que vemos aqui é um conto sobre negligência e dependência, de forma que não é difícil colocá-lo como o filme de terror que mais cutuca alguns pais, mais especificamente aqueles que atualmente colocam um tablet ou um celular nas mãos dos filhos para não precisar dar atenção a eles e, consequentemente, não se incomodarem. Claro que o filme desenvolve com a boneca do título uma situação extrema, mas acaba sendo interessante acompanhar o brinquedo preencher a lacuna criada por problemas comuns de sociabilidade em uma dinâmica familiar. E Allison Williams interpreta Gemma como uma mulher que dá total atenção ao trabalho (a clássica workaholic), a ponto de agir com indiferença em relação a outras pessoas, não demonstrando reação nem quanto a perda da própria irmã, de forma que a personagem depender de tecnologia para cuidar da sobrinha surge naturalmente na história.


Voltando a conduzir um longa-metragem após quase dez anos desde sua estreia no ótimo Housebound, o diretor Gerard Johnstone não consegue fazer o filme escapar de certas previsibilidades, como a maneira que a cena inicial em um carro chega ao fim ou ao apresentar personagens que logo podemos sacar que irão sofrer nas mãos de M3gan. Aliás, as cenas violentas em sua maioria são mais sugeridas ao invés de mostradas, uma estratégia que imediatamente fez eu pensar que o longa foi suavizado para ter uma classificação indicativa menor e alcançar um público maior, algo que infelizmente acaba custando um pouco o peso narrativo desses momentos. Mas ainda assim Johnstone mostra saber usar a presença de M3gan para criar um bom nível de tensão na maior parte do tempo, mesmo quando a pequena Cady age de maneira irritantemente rebelde, sendo que o diretor também espreme naturalmente o humor que vem da própria ideia de um brinquedo psicótico, tendo vários momentos em que o espectador pode rir de nervoso por conta das aparições da boneca.

M3gan ganha pontos por saber usar suas ideias para dialogar com questões bastante atuais no que diz respeito a presença de tecnologia na vida das pessoas, especialmente em se tratando de crianças. Mas é bom ver também que o filme é um terror eficiente, ainda que não reserve grandes surpresas ou cause tanto impacto.

Nota:



domingo, 15 de janeiro de 2023

Babilônia

Em La La Land, o diretor-roteirista Damien Chazelle concebeu um romance com personagens sonhadores e que percorriam uma representação idealizada de Hollywood e da cidade de Los Angeles. Claro, os protagonistas de Emma Stone e Ryan Gosling acabavam tendo que fazer sacrifícios pessoais a fim de realizarem seus sonhos, mas nada que incluísse grandes transgressões ou sujeiras.

Pois bem, tendo isso estabelecido, podemos dizer que Babilônia é a antítese de La La Land, como se Chazelle simplesmente jogasse fora todo o lado gracioso de seu premiado trabalho para mergulhar de cabeça no lado obscuro da indústria do cinema. Se La La Land era o yang, Babilônia é o yin.

Escrito por Chazelle, Babilônia não chega a ter uma história em si, preferindo ser um retrato de uma era, mais especificamente o período entre o final dos anos 1920 e o início dos anos 1930, que em Hollywood marca o fim da era dos filmes mudos, a chegada dos filmes falados e o início de uma certa moralização dos costumes da indústria. Nisso, passamos a acompanhar a jornada de figuras que buscam viver e crescer profissionalmente por ali. A começar por Manny Torres (Diego Calva), imigrante mexicano que faz de tudo um pouco na mansão de um executivo do estúdio Kinoscope, desde servir convidados numa festa orgíaca até transportar um elefante para esta mesma festa. Ele conhece a bela Nellie LaRoy (Margot Robbie), que aspira ser uma atriz famosa e inclusive já age como uma grande estrela. Ambos acabam se conectando com a cantora de cabaré Lady Fay Zhu (Li Jun Li) e o músico de jazz Sidney Palmer (Jovan Adepo), eles próprios buscando ascender com seus talentos. Enquanto isso, o astro Jack Conrad (Brad Pitt) busca manter sua popularidade em meio a casamentos mal sucedidos e a evolução dos filmes.


Damien Chazelle deixa claro já nas cenas iniciais que Babilônia é um filme de excessos, algo que ele faz questão de marcar não só com a grandiosidade do projeto (incluindo suas três horas de duração), mas também com as situações absurdas e, por vezes, escatológicas que retrata. Sendo assim, é difícil não ficar com os olhos arregalados quando Chazelle e seu diretor de fotografia Linus Sandgreen apostam em longos planos para percorrer cenários impressionantes, com centenas (ou seriam milhares?) de figurantes criando um verdadeiro caos visual com seus corpos, em orgias regadas a todos os tipos de drogas. E talvez não seja à toa que Chazelle se sinta confortável para apresentar o título do filme na tela apenas depois desse primeiro ato, o que ocorre após mais de 30 minutos.

E o diretor-roteirista não diminui muito o nível desses excessos ao longo da projeção, fazendo o filme passar por várias situações que ora podem surpreender pelo absurdo (podendo chocar estômagos mais fracos), ora podem divertir com as reações dos personagens. Nesse último caso, um dos melhores momentos do filme vem em uma longa sequência em que acompanhamos uma cena ser filmada várias vezes devido a problemas sonoros. No entanto, ao mesmo tempo em que a grandiosidade do projeto denota sua ambição, tem horas que Damien Chazelle parece confundir isso com preciosismo e autoindulgência, de forma que há momentos em Babilônia que soam redundantes, como a confusão envolvendo uma cobra ou um confronto com um mafioso (vivido por um caricatural Tobey Maguire). São sequências que além de incharem a trama ainda atrapalham o ritmo da narrativa, que acaba ficando um pouco mais irregular a partir da segunda metade da projeção.

Já os personagens servem para ilustrar as opressões que tomam conta dos ambientes por onde eles passam, já que para terem alguma carreira eles se veem abrindo mão de muito do que os define como seres humanos. Diego Calva (em seu primeiro papel fora de terras mexicanas) interpreta Manny Torres como uma figura constantemente inquieta, tentando controlar coisas que, muitas vezes, estão além de seu controle (nesse sentido, talvez não haja muita diferença entre o transporte de um elefante em um carro que não o suporta e os problemas de um set de filmagem ou de um estúdio). Já Margot Robbie encarna Nellie LaRoy como uma imparável força da natureza, exibindo uma energia capaz de alavanca-la ou de destruí-la, ao passo que Brad Pitt traz um charme natural para Jack Conrad, buscando imprimir no personagem uma segurança mesmo que esta não se encaixe em sua realidade, que é jogada em sua cara pela jornalista Elinor St. John, vivida pela sempre ótima Jean Smart. Para completar, Li Jun Li e Jovan Adepo se destacam quando aparecem como Lady Fay Zhu e Sidney Palmer, sendo uma pena que os dois personagens sejam mais periféricos no filme, não tendo tanto espaço quanto os outros três citados mesmo mostrando mais personalidade.

Mas ainda que por vezes acabe tropeçando em seus exageros, no fim Damien Chazelle mostra com propriedade em Babilônia que Hollywood e a arte cinematográfica de modo geral podem realizar mágicas encantadoras, cujo efeito é diferente em cada espectador. Mas muitas vezes essas mágicas podem surtir de uma certa toxicidade, em um ambiente onde o progresso de uns pode ser a derrocada de outros.


Nota: