segunda-feira, 19 de junho de 2017

Ao Cair da Noite

É raro um filme terminar deixando o espectador com uma sensação de ter carregado um grande peso nos ombros durante toda a projeção, mas foi assim que saí de Ao Cair da Noite, segundo longa-metragem de Trey Edward Shults (o mesmo do ótimo Krisha, de 2015). Ao longo de sua uma hora e meia de duração, este terror traz uma atmosfera de tensão incrivelmente densa e angustiante, de forma que podemos até sentir algum alívio quando os créditos finais começam a rolar, nos livrando gradualmente desse peso. Tudo isso é o resultado perfeito de uma narrativa que explora com inteligência o lado sombrio de seus personagens, o que ocorre sem perder de vista a humanidade deles.

Escrito pelo próprio Trey Edward Shults, Ao Cair da Noite nos coloca diante de um mundo com claros tons pós-apocalípticos, no qual uma doença fatal está afligindo as pessoas, liquidando-as uma a uma. É nesse contexto que conhecemos Paul (Joel Edgerton), sua esposa Sarah (Carmen Ejogo) e o filho deles, Travis (Kelvin Harrison Jr.), família que vive praticamente isolada em sua casa e faz o possível para se proteger de quaisquer ameaças. É então que eles se deparam com Will (Christopher Abbott), que lhes pede para ajudar a ele e sua família. Mas apesar de eles entrarem em um acordo com relação a isso, as atuais circunstâncias ainda mantém uma constante inquietação entre todos.

Como o mundo entrou nesse estado trágico em que somos inseridos nunca fica claro, assim como não temos grandes explicações sobre a doença e como exatamente ela é transmitida, se pelo ar ou por contato físico. Mas essas questões não chegam a ser um problema, já que as informações apresentadas são o suficiente para colocar a narrativa nos trilhos dentro daquilo que Trey Edward Shults deseja fazer. E isso se resume basicamente a desenvolver os personagens e as relações entre eles naquele universo para que, a partir desses elementos, ele possa extrair a maior tensão possível.


Nisso, é fascinante ver o cineasta evitar caminhos simplistas para conceber aquele universo e os personagens. Desde o início, Shults deixa claro que todos ali são figuras desesperadas, e é exatamente por isso que as coisas acabam se revelando complexas ao longo da história. Por um lado, compreendemos como eles ficam felizes e mais tranquilos quando encontram um grupo de pessoas que podem ajuda-los em meio a toda dificuldade que vivem. Mas por outro, não deixamos de notar certa amargura nisso tudo, porque as circunstâncias fazem cada um defender seus interesses, impedindo que uma relação de confiança se crie por ali, de forma que qualquer passo em falso feito por parte de alguém deixa a atmosfera imediatamente mais pesada.


O ambiente inóspito do filme, aliás, é construído admiravelmente por Trey Edward Shults, sendo que para isso ele conta com o auxílio da ótima fotografia de Drew Daniels. Enquanto as cenas externas são pintadas com tons acinzentados, as internas situadas na casa de Paul e sua família são predominantemente escuras, geralmente trazendo apenas uma luminária como fonte de iluminação, detalhes que contribuem para estabelecer uma atmosfera que consegue ser melancólica ao mesmo tempo em que é extremamente opressiva e claustrofóbica. Além do mais, isso também não deixa de estabelecer o próprio estado de espírito dos personagens, que já pararam de agir de acordo com o que é certo há muito tempo, dando mais atenção para aquilo que é necessário para sobreviverem, o que consequentemente faz eles abraçarem o que há de mais condenável em si mesmos. E Shults sabe aproveitar esses pontos para criar momentos de pura tensão, como o primeiro encontro entre Paul e Will ou toda a sequência do terceiro ato, sendo que essa tensão ainda é realçada sutilmente pela trilha de Brian McOmber.

Contando também um elenco talentoso que cria personagens multidimensionais com os quais nos importamos (o cada vez mais admirável Joel Edgerton, em especial, impressiona com a intensidade que traz a Paul), Ao Cair da Noite é um exercício de gênero fabuloso e que consegue extrair o melhor de sua premissa do início ao fim. Trey Edward Shults inclusive encerra o longa com aquele que é desde já um dos planos mais desoladores que o cinema produzirá este ano. Um final digno de um grande filme, sem dúvida.

Nota:

sábado, 10 de junho de 2017

A Múmia

Universos compartilhados parecem ter virado moda como modelo de produção para os estúdios, algo até natural considerando os altos números de bilheteria que tem rendido. Depois de termos um universo focado em heróis da Marvel, outro nos heróis da DC Comics e outro com Godzilla e King Kong, agora é a vez de figuras clássicas como Drácula, Monstro de Frankenstein e Lobisomem ganharem seu próprio mundo particular, projeto que dá seu ponta pé inicial nesta nova versão de A Múmia dirigida por Alex Kurtzman, em sua segunda empreitada na função após fazer seu nome como roteirista ao lado de Roberto Orci. No entanto, nem mesmo Tom Cruise consegue tornar animador este início da nova franquia.

Escrito por uma galeria de roteiristas (a versão final do roteiro é creditada a David Koepp, Christopher McQuarrie e Dylan Kussman, enquanto que o argumento foi concebido por Kurtzman, Jon Spaihts e Jenny Lumet), A Múmia nos apresenta a Nick Morton (Cruise), soldado que constantemente corre atrás de valiosas relíquias, tarefa na qual tem o auxílio do sargento Chris Vail (Jake Johnson). Ao lado da arqueóloga Jenny Halsey (Annabelle Wallis), a dupla encontra a tumba da princesa Ahmanet (Sofia Boutella), que foi mumificada e enterrada viva milhares de anos antes. Mas quando ela acorda destruindo tudo o que encontra pelo caminho e tendo um interesse particular por Nick, nem ele nem a Prodigium, organização especializada em estudar e combater o mal e que é liderada pelo Dr. Henry Jekyll (Russell Crowe), parecem ser capazes de para-la.


Reencarnações, vilã que suga outras pessoas para recuperar sua forma física, exército de mortos-vivos perseguindo os mocinhos, casal que se odeia inicialmente, mas gradualmente cria sentimentos um pelo outro. É praticamente impossível assistir a este A Múmia sem sentir que o roteiro aposta em clichês que já vimos em outras produções, sejam estas focadas no monstro do título ou não. Mas esse, na verdade, mostra ser o menor dos problemas do filme, já que ele pega cada um de seus pontos e os conecta com uma trama que não poderia ser mais desinteressante, sendo que o roteiro ainda a desenvolve de maneira bem expositiva para o espectador (como na sequência inicial em que Henry Jekyll conta a história de Ahmanet ou nas pontuais aparições de Vail) e trazendo ideias que beiram o ridículo, como as visões que Nick tem ao longo da projeção.

Enquanto isso, as cenas de ação são conduzidas de maneira burocrática por Alex Kurtzman, rendendo uma série de momentos esquecíveis e que tornam difícil para o diretor envolver o público. Nem a principal sequência do filme, que ocorre com cerca de vinte minutos e é a única que exibe algum esforço criativo ao focar a queda de um avião, consegue impressionar. Ao mesmo tempo, o longa exibe um senso de humor que lembra um pouco o tom da trilogia meia-boca estrelada por Brendan Fraser entre 1999 e 2008 (e que inclusive é referenciada em determinado momento), mas é um aspecto que acaba soando excessivamente bobo e forçado, com direito a uma cena em que devemos rir por Nick sentir cócegas.


Mas o que mais decepciona em A Múmia certamente é seu grande astro. Já comentei em algumas ocasiões o quanto admiro Tom Cruise como ator, mas aqui é profundamente frustrante vê-lo em cena sem fazer esforço para criar um personagem. Seu Nick Morton nada mais é do que uma versão genérica e insossa de heróis de ação que o ator interpretou ao longo da carreira, não tendo nem um terço da intensidade e (o que mais espanta) do carisma que sempre marcaram os trabalhos dele. Já Annabelle Wallis surge inexpressiva como Jenny Halsey, sendo que sua química com Cruise praticamente inexiste, ao passo que Jake Johnson se revela particularmente irritante como Vail, cumprindo pobremente a função de alivio cômico do projeto. E se Sofia Boutella não consegue fazer de Ahmanet uma vilã ameaçadora, Russell Crowe não tem muitas chances para tornar seu Henry Jekyll uma figura interessante, servindo apenas para apontar que o universo do filme é maior do que o que é apresentado aqui, o que só deve ser explorado futuramente nos outros exemplares da franquia.

Espera-se que A Múmia não seja uma amostra do que serão os filmes deste novo universo de monstros. Caso contrário, acompanhar cada um deles promete ser uma experiência cinematográfica triste.

Nota:

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Mulher-Maravilha

O histórico de adaptações cinematográficas baseadas em super-heroínas dos quadrinhos é deprimente. Além de elas terem recebido poucas chances como protagonistas ao longo dos anos, principalmente se compararmos com o número de filmes focados nas contrapartes masculinas, tais chances ainda resultaram em verdadeiros desastres, resumindo-se a trinca Supergirl (aquele lançado em 1984), Mulher-Gato e Elektra. Levando isso em consideração, chega a ser um alívio ver esse primeiro filme da Mulher-Maravilha, uma das principais heroínas da DC Comics e que aqui ganha uma bela aventura pelas mãos da talentosa diretora Patty Jenkins, que finalmente faz seu segundo longa-metragem, quatorze anos após sua estreia no ótimo Monster: Desejo Assassino.

Situado praticamente um século antes da breve aparição da protagonista, Diana (Gal Gadot), em Batman vs. Superman, o filme mostra as origens dela como guerreira amazona na ilha de Temiscira e o auxílio que ela decide dar ao espião americano Steve Trevor (Chris Pine) na Primeira Guerra Mundial, depois que o avião do sujeito cai acidentalmente em seu lar. No conflito, Diana pretende destruir Ares, Deus da Guerra e figura que ela acredita estar por trás de toda a destruição que está acontecendo entre os humanos.

Assim como O Homem de Aço, Mulher-Maravilha não tem como um de seus principais focos construir um universo cinematográfico dos heróis da DC Comics, como ocorreu às pressas em meio a bagunça de Batman vs. Superman e teve continuidade ainda pior em Esquadrão Suicida. Sim, há pequenas referências que ligam o filme aos seus antecessores (a principal delas inclusive aparece logo de cara), mas o roteiro escrito por Alan Heinberg, a partir do argumento concebido por ele, Jason Fuchs e Zack Snyder, prefere seguir um caminho mais simples e objetivo, contando a história que tem em mãos e explorando no processo as possibilidades que esta abre. Afinal, além de ter uma super-heroína no centro da narrativa, o filme ainda a situa em um contexto histórico obviamente conservador em 1918, com lugares unanimemente sendo preenchidos por homens enquanto as mulheres ficam submissas a eles, não assumindo posições de destaque (o que lamentavelmente ainda ocorre bastante em pleno 2017). Nisso, o fato de Diana vir de um mundo completamente diferente, habitado e regido por mulheres, e ser uma espécie de peixe fora d’água no mundo dos humanos possibilita que o filme toque com naturalidade nessa desigualdade, seja em um pequeno comentário que a personagem faz sobre o trabalho de secretária ou no silêncio que ela causa com sua mera presença em uma sala cheia de militares.


Aliás, ver Diana se impor diante dos homens ao seu redor é uma das melhores coisas do filme, de forma que ela constantemente puxa para si a responsabilidade que outros não querem ou preferem não assumir em determinadas situações. Nesse sentido, uma das melhores sequências do filme é exatamente o confronto em um vilarejo no qual ela surge no front de batalha como uma líder nata, sendo seguida por Steve Trevor e sua equipe formada por Sameer (Saïd Taghmaoui), Charlie (Ewen Bremmer) e o Chefe (Eugene Brave Rock). E já que falei em confronto, vale ressaltar que as cenas de ação são conduzidas com uma segurança admirável por Patty Jenkins, que mantém a geografia delas sempre clara para o espectador ao mesmo tempo em que impõe um ritmo ágil e envolvente, algo que não se perde nem diante do uso excessivo do slow motion, que aqui até funciona para ressaltar as habilidades da protagonista e outros detalhes das batalhas. Além disso, com o auxilio do excelente design de produção de Aline Bonetto, a diretora concebe maravilhosamente a grandiosidade da ilha de Temiscira e a recriação de época do nosso mundo em 1918, também sendo notável em meio a isso a ótima fotografia de Matthew Jensen, que cria um contraste apropriado entre os dois ambientes, com o primeiro surgindo em cena de maneira calorosa, ressaltando a natureza cheia de humanidade das amazonas, enquanto que o segundo é coberto de tons sombrios condizentes com a guerra.


Depois de ter uma participação pequena demais para dizer a que veio em Batman vs. Superman, Gal Gadot obviamente tem aqui a chance de realmente se destacar, exibindo grande carisma no papel de Diana e encarnando com personalidade a força da personagem e a indignação dela diante da natureza autodestrutiva dos humanos, tornando-a uma super-heroína que rapidamente conquista a simpatia do espectador. A atriz ainda tem uma bela dinâmica com o igualmente carismático Chris Pine, cujo Steve Trevor se estabelece como o óbvio interesse amoroso da protagonista, mas sendo também um elo emocional importante para fortalecer a visão otimista que ela tem da humanidade. E se Robin Wright e Connie Nielsen se destacam mesmo com pouco tempo de tela, fazendo de Antíope e Hipólita (tia e mãe de Diana, respectivamente) personagens fortes e de autoridade inquestionável em Temiscira, o mesmo não se aplica a David Thewlis e Danny Huston, que têm papeis meio subdesenvolvidos como Sir Patrick Morgan e o vilão Erich Ludendorff.

Apesar de decepcionar um pouco em sua batalha final, que tenta se sustentar mais na grande escala dos efeitos visuais do que em qualquer outra coisa, Mulher-Maravilha consegue se estabelecer como um exemplar bastante consistente entre os filmes de super-heróis, o que é importante especialmente em tempos em que a falta de representatividade vem sendo cada vez mais questionada. Assim, o filme é um sopro de ar fresco para os projetos focados em super-heroínas dos quadrinhos e uma boa companhia a outras superproduções protagonizadas por mulheres (como O Despertar da Força, Caça-Fantasmas e Rogue One). Perto disso, ser o acerto que o universo cinematográfico da DC Comics estava precisando é um bônus.


Nota: