quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A Visita

Tendo despontado no final da década de 1990 como um diretor promissor ao fazer a obra-prima O Sexto Sentido e logo depois o ótimo Corpo Fechado, M. Night Shyamalan lamentavelmente não demorou para ficar totalmente em baixa, fazendo obras desastrosas como A Dama na Água e Fim dos Tempos, tornando-se um realizador que gera mais dúvidas e desgosto do que admiração. Mesmo assim, por já ter mostrado que tem talento e capacidade de realizar grandes filmes, é relativamente fácil entrar em seus novos projetos torcendo para que ele tenha feito algo minimamente satisfatório. Dito isso, em A Visita finalmente Shyamalan volta a realizar um trabalho que funciona.

Dessa vez, o diretor se rende ao formato dos falsos documentários ao se concentrar nos jovens irmãos Becca (Olivia DeJonge) e Tyler (Ed Oxenbould), que vão passar uma semana na casa dos avós (interpretados por Peter McRobbie e Deanna Dunagan), figuras que nunca conheceram por conta de sua mãe, Paula (Kathryn Hahn), ter cortado relações com eles quando era mais jovem por motivos que não compartilha com ninguém. Sendo uma aspirante a diretora de cinema, Becca decide fazer um documentário sobre a viagem, filmando com a ajuda do irmão quase tudo o que acontece ao longo dos dias. No entanto, ela e Tyler logo percebem que há algo estranho com seus avós e, obviamente, a visita acaba não sendo muito tranquila.

Não chega a ser um longa particularmente criativo, tanto pela trama quanto pela maneira como utiliza o formato documental, trazendo uma série de coisas comuns em obras do tipo, como a necessidade de Becca de filmar até coisas que não serviriam para o documentário que pretende realizar, mas que, claro, funcionam dentro do que Shyamalan precisa. Mesmo que isso não faça muito sentido, não é um detalhe que incomode tanto considerando que, do contrário, não teríamos um filme sobre o qual falar agora. No fim das contas, o que acaba importando é que o diretor torna interessante sua proposta de criar um ambiente gradualmente inquietante, no qual ele também busca divertir o público através de bizarrices, como as atividades noturnas da avó dos protagonistas, ou de besteiras, como a habilidade de Tyler como rapper. Shyamalan consegue equilibrar esses aspectos da narrativa, de maneira que um não tira a força do outro.

Mas talvez o mais surpreendente em A Visita é que o roteiro escrito pelo próprio Shyamalan se revela bem estruturado, o que até compensa um pouco alguns dos diálogos desnecessariamente expositivos. Sendo assim, é interessante ver o diretor inserir pontualmente certos elementos para dar-lhes sentido mais adiante, mostrando que ele tem alguma noção do que está fazendo, diferente do que ocorria em seus últimos trabalhos. E se a reviravolta que acontece no início do terceiro ato pode até ser previsível para olhos mais atentos, ao menos a construção narrativa até ali é boa o suficiente para merecer elogios.

Enquanto isso, Olivia DeJonge e Ed Oxenbould surgem carismáticos interpretando Becca e Tyler, exibindo ainda uma boa dinâmica em cena, algo essencial para que formemos uma ligação com os personagens e com a situação na qual eles se encontram. É uma pena, porém, que certos traumas e fobias deles sejam trazidos por Shyamalan apenas quando necessário para o roteiro, sendo desenvolvidos de maneira meio corriqueira. E se Kathryn Hahn faz bem o papel da mãe deles mesmo tendo poucas cenas, Deanna Dunagan e Peter McRobbie encarnam a estranheza e a doçura dos avós apropriadamente, indo de um jeito para o outro naturalmente. Dunagan em particular prova ser capaz de causar arrepios só com suas expressões maléficas.

A Visita fica longe de ser marcante como O Sexto Sentido ou Corpo Fechado, mas só por não representar um novo desastre comandado por M. Night Shyamalan já é um alívio, podendo indicar que o cineasta está voltando à boa forma. Resta esperar que seu próximo projeto o mantenha nesse caminho.

Nota:


terça-feira, 24 de novembro de 2015

Séries: Jessica Jones

Aparentemente, o que a Marvel não tem coragem de fazer em seus filmes, ela está fazendo nas séries que está realizando em parceria com a Netflix. Enquanto no cinema nos deparamos com produções que apostam em histórias relativamente leves, com uma escala grandiosa e que divertem com sua gama de heróis (o que vem funcionando bem na maioria dos longas), praticamente o oposto ocorre nas realizações para o serviço de streaming, onde somos apresentados a personagens mais densos em tramas adultas e sombrias que se utilizam de uma ambientação urbana, com os realizadores até se arriscando mais. Nisso, Demolidor surgiu no primeiro semestre como uma produção que fazia jus ao que o personagem e seu universo tinham de melhor, e Jessica Jones chega agora mantendo esse ritmo, conseguindo estabelecer novos patamares quanto ao que a Marvel nos acostumou nos últimos anos.

Desenvolvida por Melissa Rosenberg (que pode despertar suspeitas por ter sido roteirista da “saga” Crepúsculo, mas cuja participação em Dexter é notável), Jessica Jones tem na personagem-título (interpretada por Krysten Ritter) uma figura que está longe de ser perfeita e que até tentou usar sua superforça para ser uma heroína, tendo desistido disso para trabalhar como detetive particular. Chamada ocasionalmente para investigar alguns casos, Jessica ganha o suficiente para manter seu apartamento e sustentar seu alcoolismo, levando uma vida antissocial, desleixada e quase depressiva, na qual tem como única amiga a famosa apresentadora de rádio Trish Walker (Rachael Taylor). Enquanto segue uma das pistas de um caso, Jessica descobre que Kilgrave (David Tennant), homem que a traumatizou ao controlar sua mente e obriga-la a fazer coisas horríveis, está vivo e manipulando uma série de pessoas, estando mais obcecado do que nunca por ela.

Ambientada na mesma Nova York de Demolidor, Jessica Jones nos introduz novamente a um mundo sombrio e inquietante, não desviando o olhar da violência impregnada em sua sociedade. Se Demolidor já impressionava um pouco nesse sentido, o que se vê aqui eleva o nível de sanguinolência da Marvel, o que obviamente dá mais peso aos atos dos personagens, principalmente do vilão, diferindo bastante do que ocorre nos filmes, que contam com grandes destruições, mas não encaram suas consequências, algo que a série até referencia em um de seus episódios. É algo que já deixa bem claro o teor adulto que a produção deseja seguir, sendo que as cenas de sexo e a inclusão de temas como estupro e aborto ainda servem para enfatizar esse aspecto um pouco mais.

Em meio a isso e a uma narrativa que remete diretamente ao noir, Jessica Jones não se preocupa tanto com cenas de ação ou em ficar inserindo gratuita e constantemente detalhes que a conectem ao restante do universo Marvel. Ao invés disso, os episódios se concentram quase exclusivamente na trama e nos personagens, desenvolvendo-os inteligentemente. E se na metade da temporada ela parece inchada, com elementos que soam meio deslocados dentro da trama, como os vizinhos escandalosos de Jessica, um grupo de apoio formado por vítimas de Kilgrave e a subtrama pessoal da advogada Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss), eventualmente tudo acaba tendo alguma função, exibindo o bom planejamento feito para a temporada. Mas vale dizer que quando parte para uma cena de ação a série também não faz feio, podendo divertir com a aparente indestrutibilidade física da protagonista (a briga em um bar no segundo episódio é ótima nesse sentido) ou ser mais intensa (uma luta que acontece no apartamento de Trish).

Enquanto isso, Jessica Jones é quase uma anti-heroína se levarmos em conta seus hábitos e o desdém com o qual encara muito do que acontece ao seu redor. Mesmo assim, trata-se de uma mulher inteligente, determinada e forte (tanto física quanto psicologicamente), que se sente compelida a fazer a diferença no mundo onde vive, e Krysten Ritter encarna as nuances da personagem com segurança, sem esquecer seu lado humano. Além disso, a atriz tem uma boa dinâmica com Rachael Taylor e Eka Darville, que como Trish e um dos vizinhos de Jessica, Malcolm, funcionam muito bem como seus ajudantes. Já Carrie-Anne Moss se destaca com a frieza e a força de sua Jeri Hogarth, ao passo que Mike Colter prova ser uma bela escolha para o papel de Luke Cage, herói que ganha aqui uma ótima introdução antes de estrelar sua própria série no ano que vem. Fechando o elenco, David Tennant brilha interpretando Kilgrave, um vilão que pode não ser uma grande ameaça fisicamente, mas mais do que compensa isso com a maneira como utiliza seu poder de controlar a mente das pessoas, sendo um sujeito imoral e sádico, cuja obsessão pela protagonista chega a ser doentia. Tennant surpreende ao trazer charme e carisma ao papel, conseguindo até mesmo divertir com o jeito do personagem, ainda que ele seja uma figura inquietante, e não é à toa que vários grandes momentos da série trazem heroína e vilão em cena.

Jessica Jones é uma adição muito rica ao universo montado pela Marvel, e é bom ver mais uma personagem feminina se destacando nessa franquia, algo importante e que tem estado em falta. Ao final da temporada, fica a curiosidade de ver quais serão próximos passos dessa atípica heroína, que certamente ganhará maior popularidade graças a esta ótima série.


quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Malala

(Crítica originalmente publicada no Papo de Cinema)
Em um mundo habitado por bilhões de pessoas, são poucas àquelas que se destacam mundialmente por sua humanidade, lutando por algo que tire um pouco das trevas existentes por aqui. A paquistanesa Malala Yousafzai é uma delas. Mais jovem detentora do Prêmio Nobel, a garota de 18 anos encara uma missão para que todos tenham acesso à educação, além de lutar pelos direitos das mulheres de sua terra-natal, no Vale de Swat, que chegam a ser banidas das escolas graças à opressão que lhes é imposta. Mesmo tendo sofrido um atentado que quase tirou sua vida, em 2012, Malala não abriu mão de seus ideais (repito, ela tem apenas 18 anos). É uma figura obviamente fascinante, e grande parte da eficiência deste documentário Malala, dirigido por Davis Guggenheim (o mesmo de Uma Verdade Inconveniente), se deve exatamente a ela.
Ao longo do filme, o diretor acompanha Malala em viagens a vários países, onde ela divulga a causa que defende e inspira uma série de pessoas, além de mostrar o dia-a-dia dela com a família. A partir disso, Guggenheim conta a história de vida da garota, promovendo um retrato bastante completo. Não demora muito para que ele estabeleça que, por mais que estejamos falando de uma jovem de maturidade exorbitante, ainda assim trata-se obviamente de uma pessoa comum, graciosa e bem humorada, que tem responsabilidades teoricamente normais para alguém de sua idade. Estudar para as provas finais da escola talvez seja o maior exemplo disso (afinal, é preciso mais do que um Prêmio Nobel para ter um bom boletim).
Mas, infelizmente, não é em todos os lugares que esses compromissos escolares são vistos como parte inerente do bom senso. É aí que reside a força da luta de Malala em nome da educação como base para que todos possam crescer social e intelectualmente, algo que os ideais conservadores que regem certos países, como os do Oriente Médio, não gostariam de ver acontecer. Ao ser perguntada como sua vida seria caso seus pais fossem de acordo com a cultura local, Malala logo responde que já estaria casada e com dois filhos, mostrando o tipo de função que a mulher tem naquela sociedade. Não é seu caso, que então se vê livre para ajudar outras adolescentes como ela a terem mais oportunidades e poderem escolher o próprio caminho. Em sua visão, se ela consegue encarar de igual pra igual pessoas com o triplo de sua idade, sejam elas Jon Stewart ou o presidente de um país, então qualquer uma consegue.
Vale dizer que Malala não deixa de ser um documentário burocrático e um tanto repetitivo na forma como aborda o material que tem em mãos. Mesmo assim, a relevância da história da protagonista e de seu exemplo ganham na tela o peso que merecem. Em tempos em que a esperança na humanidade frequentemente tende a cair (e os ataques terroristas que afligiram a França recentemente são um motivo para isso), é bom constatar que figuras como Malala Yousafzai existem e estão, aos trancos e barrancos, nos ajudando a evoluir.
Nota:

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Túmulo dos Vagalumes

(Crítica originalmente publicada no Papo de Cinema)
“21 de setembro de 1945. Essa foi a noite em que eu morri”. Assim, logo nas primeiras falas, Túmulo dos Vagalumes estabelece que a história a ser contada não manterá o espectador confortável e seguro quanto a um destino feliz dos personagens. Tendo em mãos um material de peso imensurável, Isao Takahata (um dos principais nomes do Studio Ghibli, ao lado de Hayao Miyazaki) realiza um conto impactante pela maneira como mostra a guerra tirando o chão das pessoas gradualmente. Mirando um público mais maduro, o diretor corta a ideia equivocada das animações servirem exclusivamente para crianças.
Escrito pelo próprio Takahata, a partir do livro de Akiyuki Nosaka, Túmulo dos Vagalumes acompanha o jovem Seita e sua irmãzinha Setsuko, que tentam sobreviver como podem nos últimos meses da Segunda Guerra Mundial. Após a morte da mãe durante um ataque aéreo que devastou parte da cidade de Kobe, os dois passam um tempo com a família da tia, mas não demora até que sintam necessidade de tentar cuidar um do outro por conta própria.
Com uma história dessas, é lógico que o coração do filme está na relação entre os irmãos, ligação tão forte que criar empatia por eles é fácil, sobretudo em virtude da situação de vulnerabilidade em que se encontram, algo que Isao Takahata trata com imensa sensibilidade. Vemos Seita colocar a vida de Setsuko sempre em primeiro lugar, protegendo-a de qualquer mal (como quando ele a afasta de um corpo na praia) e tentando animá-la, ao passo que na maior parte do tempo a garota exibe uma visão inocente sobre o que ocorre ao redor, achando em pequenas preciosidades motivos para sorrir, como nas balas de frutas recorrentes ao longo da história, ou nos vagalumes que iluminam o abrigo onde fica com o irmão. A dupla encontra forças mutuamente para continuar seguindo em frente, para sobreviver em tempos difíceis, mesmo diante de obstáculos que teimam em querer derrubá-los.
É principalmente a partir desse aspecto que Isao Takahata explora o horror representado pela guerra na vida dos irmãos. Não tentando amenizar os problemas que Sentai e Setsuko enfrentam por conta dos recursos limitados, o diretor cria imagens inquietantes, sejam as marcas nos corpos deles, deixadas pelos mosquitos, ou o resultado da desnutrição. São momentos dolorosos, exatamente pela identificação que criamos com os personagens e sua miserabilidade. Takahata mostra como a desumanidade inerente à guerra pode afetar cruelmente até aqueles que nada têm a ver com ela, sendo capaz de jogar vidas fora por força de um poder que, no fim, é até uma futilidade diante da própria humanidade.
Filmes do calibre de Túmulo dos Vagalumes são marcantes e profundamente arrasadores. Não só por terem personagens como Seita e Setsuko ou pelo peso de suas histórias, mas também porque são obras que não ignoram aquilo que há de pior no mundo, nem como isso pode impactar o que há de melhor. E por mais difícil que seja absorver tamanho abalo emocional, no final esta fantástica produção do Studio Ghibli acaba provando nossa capacidade de sermos humanos.
Nota:

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Grilhões do Passado

(Crítica originalmente publicada no Papo de Cinema)
É difícil não se lembrar de Cidadão Kane assistindo a Grilhões do Passado, filme lançado por Orson Welles em 1955. Seja pela forma como o diretor constrói a narrativa ou por certos aspectos da trama, a obra-prima que marcou a estreia (e a carreira) do realizador ecoa neste trabalho quase inerentemente. Mas, mesmo com esse detalhe (que nem chega a ser exatamente um problema), essa produção pouco lembrada de Welles é interessante por suas próprias virtudes.
O roteiro escrito pelo próprio diretor nos coloca diante de Guy Van Stratten (Robert Arden). Antes de ser preso por contrabando de tabaco, ele e a namorada, Mily (Patricia Medina), encontram um homem prestes a morrer. O moribundo lhes dá um nome supostamente muito valioso: Gregory Arkadin. Ao sair da prisão, Guy descobre que o mistério em suas mãos se refere a um magnata multimilionário (interpretado por Welles), que ele conhece após aproximar-se de sua filha, Raina (Paola Mori). Tendo Arkadin feito um relatório completo sobre Guy, este ganha do próprio magnata a chance de dar o troco, recebendo a tarefa de investigar sua vida, mas sem saber do perigo em que pode estar se metendo.
“Um grande e poderoso rei perguntou a um poeta: ‘O que posso dar-lhe, de tudo o que possuo?’. Sabiamente, este respondeu: ‘Qualquer coisa, senhor... Exceto seu segredo’”. Welles abre Grilhões do Passado com esses intertítulos, que acabam se mostrando muito significativos para o que vemos ao longo do filme. Criando um verdadeiro mistério em volta de Gregory Arkadin, personagem que leva um bom tempo para aparecer na tela, o longa mantém o espectador intrigado, não só sobre quem ele é, mas também com relação a como Guy Van Stratten chega ao nível de urgência visto logo em sua primeira cena, segmento, aliás, responsável por acender o pavio da narrativa não linear.
É então que o diretor passa a explorar, através da investigação do protagonista e suas consequências, a questão da imagem ostentada. Por mais poderosa que a pessoa seja, ela pode acabar manchada por possíveis fatos obscuros. Saber esses mistérios não é vantagem para ninguém considerando que a pessoa pode ser capaz de qualquer coisa para se preservar. Os segredos podem fazê-la agir de maneira irracional quando menos se espera, e o momento-chave em que Arkadin conta a breve história sobre um escorpião e um sapo é brilhante nesse sentido.
Orson Welles não tem medo de abraçar a moral corrompida de seus personagens, e não é à toa que ele preenche a tela constantemente com sombras, exaltando esse aspecto ao mesmo tempo em que cria uma atmosfera tensa entre eles, como na cena em que Guy e Arkadin conversam no quarto de Raina. Aliás, se Guy nas mãos de Robert Arden acaba sendo um protagonista bom o suficiente para nos manter envolvidos em sua jornada investigativa, Gregory Arkadin rouba quase todas as cenas graças a presença onipotente de Welles, que cria uma figura imprevisível. Boa parte da riqueza de Grilhões do Passado vem da inquietude existente entre os dois personagens, que quase entram numa espécie de disputa moral.
Conduzido sempre com segurança e contando com um grande terceiro ato, cuja agilidade é perfeita para encarar as situações que culminam nas ações dos personagens, Grilhões do Passado poderia ser mais lembrado. Se não é uma obra-prima como Cidadão Kane, ainda se mostra uma produção admirável, que contribui para o brilho da filmografia de seu renomado realizador.
Nota:


quarta-feira, 4 de novembro de 2015

007 Contra Spectre

Usando a era de Daniel Craig no papel de James Bond para marcar uma espécie de recomeço para a história do personagem, a série 007 tem conseguido fazer uma releitura interessante de si mesma, rendendo em Cassino Royale e Operação Skyfall dois longas que se revelaram memoráveis entre àqueles protagonizados pelo espião (o segundo capítulo, Quantum of Solace, é esquecível perto deles). James Bond ganhou um novo fôlego e considerando que essa ideia de recomeço agora está completa, de forma que até o tiro em direção à câmera voltou para o lugar certo, é compreensível que Sam Mendes (retornando como diretor após o sucesso de Operação Skyfall) e os outros envolvidos na série tenham sentido segurança para explorar ares familiares ao universo desenvolvido ao longo de mais de cinco décadas, e é isso que acontece neste 007 Contra Spectre.

O próprio título já estabelece a história que acompanharemos. Depois dos eventos de Operação Skyfall, James Bond agora investiga os passos da misteriosa organização terrorista SPECTRE, que não aparecia oficialmente nos filmes desde Os Diamantes São Eternos, há 44 anos. As pistas acabam colocando o espião diante de um velho conhecido, Franz Oberhauser (Christoph Waltz), que ele achava estar morto. Enquanto isso, o novo M (Ralph Fiennes) tem que lidar com a presença de Max Denbigh (Andrew Scott), que ameaça dar um fim ao programa “00” ao questionar sua eficiência e a relevância do MI6, o que obriga Bond a seguir sua missão por baixo dos panos.

Trata-se de outro filme no qual James Bond tem que lidar com uma missão de teor pessoal, algo comum na série e que aqui é interessante ao explorar um pouco mais o passado do personagem, assim como aconteceu em Operação Skyfall. Nisso, o roteiro é até corajoso na forma como desenvolve a trama, principalmente no que diz respeito à relação entre o herói e o vilão, dando a ela camadas que a tornam mais complexa. Além disso, durante a longa investigação feita por Bond, o filme reaproveita orgânica e inteligentemente vários elementos apresentados nos três exemplares anteriores, mostrando ser o resultado natural deles ao mesmo tempo em que faz o protagonista encarar feridas mal cicatrizadas, o que dá um peso maior à narrativa.

Tudo isso é conduzido com calma e segurança por Sam Mendes, ainda que ocasionalmente o cineasta não consiga impedir o filme de ter alguns problemas de ritmo. Mas ele compensa isso ao mais uma vez mostrar ser um diretor de ação formidável, construindo sequências intensas, empolgantes e divertidas, como uma perseguição no ambiente gélido da Áustria e a luta que acontece em um trem, sendo que ambas envolvem Hinx (interpretado pelo imponente Dave Bautista), capanga típico da série, que troca suas falas por socos e pontapés. Aliás, essa sequência no trem possivelmente referencia numa tacada só as lutas de Moscou Contra 007, Com 007 Viva e Deixe Morrer e O Espião Que Me Amava, comprovando o tom mais à moda antiga adotado pela produção. É uma pena, no entanto, que nenhuma delas se equipare àquela que abre o filme, iniciada com um belíssimo plano-sequência reapresentando o protagonista em meio a sua missão na Cidade do México, durante o Dia dos Mortos, e finalizada de maneira tensa e eletrizante em um helicóptero.

Interpretando James Bond pela quarta vez, Daniel Craig já revela ser capaz de encarnar a frieza e a exaustão do personagem mesmo parecendo estar no piloto automático, fazendo isso sem sacrificar seu senso de humor (como já falei outras vezes, Sean Connery pode ser o melhor Bond da série, mas Craig vem logo atrás). Já Léa Seydoux exibe força no papel da bond girl Madeleine Swann, tendo uma boa dinâmica com Craig, ainda que os sentimentos entre os personagens acabem soando esquemáticos graças às necessidades do roteiro. E se Monica Bellucci mal tem tempo de tela como Lucia Sciarra, Ralph Fiennes, Naomie Harris e Ben Whishaw dão personalidade aos conhecidos papeis de M, Moneypenny e Q. Finalmente, Christoph Waltz encarna maravilhosamente o sadismo de Franz Oberhauser, um vilão clássico por natureza e com motivações pessoais que lhe proporcionam maior aprofundamento, enquanto que o mistério feito em cima de sua identidade funciona apenas para apresentá-lo com calma e fazer uma rima dentro da franquia, já que se trata de algo óbvio desde o princípio.

007 Contra Spectre é admirável ao utilizar as peças que tem à disposição para montar uma narrativa que mantém o atual vigor da série enquanto dialoga com o que ela era antigamente. Em um ano como 2015, no qual vários filmes de espionagem se destacaram (como Missão Impossível 5, O Agente da U.N.C.L.E. e Kingsman), é bom ver que James Bond não decepcionou.

Nota: