quarta-feira, 29 de março de 2023

O Urso do Pó Branco

Arte é uma produção imaginativa por natureza. Um processo criativo que nos permite dar vida a qualquer história, sentimento ou ideia na esperança de nos conectarmos com outros seres humanos. É também o que permite que um filme como O Urso do Pó Branco pegue uma história real e a transforme em algo majoritariamente ficcional. Afinal, se a diretora Elizabeth Banks contasse a história do urso do título exatamente como se desenrolou, o filme na verdade não teria muito o que contar, tendo o animal consumido cocaína e morrido pouco tempo depois. Mas ao imaginar esse urso causando terror e deixando rastros de sangue por onde passa, Banks ganha uma premissa bem mais chamativa. É uma pena, porém, que tal imaginação não renda um filme dos mais eficazes.

Escrito por Jimmy Warden, O Urso do Pó Branco nos leva até 1985, quando uma grande remessa de cocaína cai nas florestas do estado da Geórgia. Ali, um grande urso acaba encontrando e consumindo grandes quantidades da droga, ficando absolutamente surtado e agressivo, o que o torna uma ameaça a qualquer um que surja em seu caminho. Enquanto isso, a enfermeira Sari (Keri Russell) entra na floresta à procura de sua filha Dee Dee (Brooklynn Prince) e o amigo dela Henry (Christian Convery), ao passo que a dupla Eddie e Daveed (Alden Ehrenreich e O’Shea Jackson Jr., respectivamente) tenta recuperar a cocaína, que pertence ao chefão do crime Syd (o saudoso Ray Liotta). E ninguém imagina que um urso “doidão” está à espreita.


É normal que uma premissa como essa não almeje se levar a sério, buscando ter o espírito de um filme B que mistura terror e comédia. É algo que Elizabeth Banks (em seu terceiro longa na cadeira de direção, depois do divertido A Escolha Perfeita 2 e o mediano reboot de As Panteras) trata de estabelecer já na primeira cena, trazendo um contrabandista (vivido por Matthew Rhys) despachando a cocaína de seu avião de maneira infantil e, logo em seguida, tendo um fim absolutamente patético. Mas mesmo tendo um senso de humor que pontualmente apresenta momentos engraçados como essa cena inicial, o filme na maior parte do tempo não consegue fazer tanta graça quando deseja, soando apenas bobo e colocando no meio disso personagens que ou são puramente caricatos ou puramente unidimensionais, o que os torna desinteressantes seja como obstáculos, seja como alimentos para o urso. E o elenco cheio de nomes talentosos pouco pode fazer para contornar isso.


Aliás, as cenas que trazem pessoas sendo atacadas pelo urso claramente são tratadas por Elizabeth Banks como uma espécie de carro-chefe do filme, mas nem mesmo elas impressionam. Isso porque além de ser difícil se importar com o que ocorre na tela, tais cenas ainda são realizadas de forma bastante burocrática, ficando longe de chocar o espectador com o que o urso é capaz de fazer com suas vítimas, e o fato de a sanguinolência (ou ao menos boa parte dela) ser feita através de computação gráfica também não contribui muito para que esses momentos tenham alguma relevância.

O Urso do Pó Branco até pode ser uma obra consciente da própria bobagem que representa, mas quem dera isso fosse suficiente para sustentar sua narrativa. Ou ao menos para tornar a graça do filme um pouco mais memorável.

Nota:



terça-feira, 21 de março de 2023

John Wick 4: Baba Yaga

Toda ação tem uma consequência. Podemos dizer que essa ideia está no centro de todos os eventos que se desenrolam ao longo de toda a franquia John Wick. Eventos estes que não cansam de tomar proporções cada vez maiores até ficarem quase fora de controle. É até curioso lembrar que tudo começou com um assassino profissional se vingando daqueles que mataram seu cachorro e roubaram seu carro, e gradualmente vimos este mesmo assassino entrar em uma verdadeira guerra contra todo seu submundo do crime. E se os três primeiros exemplares estabeleceram John Wick como uma franquia de ação empolgante, este John Wick 4: Baba Yaga retoma essa empolgação e não a deixa cair em nenhum momento.

Escrito por Shay Hatten e Michael Finch, John Wick 4 tem uma trama bem simples, como é comum na série. Depois dos eventos do terceiro filme, o personagem-título (Keanu Reeves) quer se vingar da Alta Cúpula e ficar livre de uma vez por todas do submundo de assassinos profissionais. A Cúpula por sua vez é representada agora pela figura do Marquês Vincent de Gramont (Bill Skarsgård), que quer o fim de John Wick e não medirá esforços para destruir ele e qualquer um que o ajudar. Para alcançar tal objetivo, o Marquês convoca até mesmo Caine (Donnie Yen), um assassino cego e que é um velho amigo de Wick.


Apesar de simples, a trama não impede que o diretor Chad Stahelski construa um épico de ação com quase três horas de duração. Isso se deve principalmente porque Stahelski e sua equipe parecem se deliciar com toda possibilidade de expandir o universo de John Wick, apresentando novos personagens, regras e núcleos narrativos. E assim como foi em John Wick 2 e 3, é fascinante ver esse universo ganhar vida e se revelar cada vez maior. Neste quarto filme, porém, há determinados momentos em que a trama pode soar desnecessariamente longa, com os roteiristas apenas querendo colocar mais obstáculos no caminho do protagonista mesmo quando poderiam ser mais objetivos. Mas creio que tal inchaço na história deixa de ser um problema quando vemos que ele traz recompensas, com os obstáculos adicionados rendendo belas cenas de ação e apresentando personagens que chamam a atenção. Nesse sentido, destaco o Rastreador vivido por Shamier Anderson, que ao longo do filme mostra ter seus próprios interesses, e o chefe da cúpula alemã, Killa, vivido por um quase irreconhecível Scott Adkins, um dos mais interessantes astros de ação contemporâneos e que aqui tem uma rara oportunidade de criar um personagem que não é definido só por suas habilidades como artista marcial.


E já que mencionei as cenas de ação, é preciso dizer que Chad Stahelski com frequência passa a sensação de que uma é melhor que a outra. A exemplo do que fez nos filmes anteriores, o diretor investe não só na grande escala das lutas e tiroteios, mas também na variedade, de forma que esses momentos jamais soam repetitivos e trazem o elenco usando de tudo um pouco em meio ao quebra-pau, sejam armas de fogo, facas, espadas, carros ou nunchakus. Mas mais do que isso, Stahelski e o diretor de fotografia Dan Laustsen fazem com que a ação seja visualmente atrativa para o espectador, deixando a mise en scène sempre clara e por vezes investindo em planos longos que contemplam as ótimas coreografias dos atores, merecendo destaque a sequência filmada em um ângulo alto (plongée) e que acompanha John Wick eliminando seus adversários enquanto passa por várias salas. Aliás, por conta da intensidade da ação, os momentos em que John Wick 4 se concentra no desenvolvimento de seu universo e de seus personagens também servem como pausas para o espectador, que assim pode respirar um pouco antes de entrar na próxima grande sequência do filme, e o roteiro merece créditos por conseguir amarrar de maneira organizada toda essa ação à história e às motivações dos personagens.

Tendo em vista a alta regularidade da franquia, dizer que John Wick 4 é o melhor exemplar que ela apresentou até agora não quer dizer pouca coisa. O que Chad Stahelski, Keanu Reeves e companhia realizam aqui é um verdadeiro espetáculo de ação, sendo desde já uma das produções que merecem destaque nesse ano.

Obs.: Há uma cena após os créditos finais.

Nota:



quinta-feira, 2 de março de 2023

Creed III

Uma coisa que podemos notar tanto na série Rocky quando nesta série derivada Creed é que, mesmo focando seus respectivos filmes em protagonistas completamente diferentes um do outro, elas compartilham a ideia de fazer os personagens encararem conflitos que se revelam muito pessoais. Assim, quando o Rocky Balboa de Sylvester Stallone ou o Adonis Creed de Michael B. Jordan entram em um ringue, o embate físico que se desenrola acaba sendo muito maior do que uma mera troca de socos em uma arena lotada. Jordan mantém essa ideia como cerne neste Creed III, no qual o ator ainda assume a cadeira de diretor pela primeira vez na carreira.

Escrito por Keenan Coogler e Zach Baylin a partir do argumento concebido por eles e Ryan Coogler, Creed III traz Adonis Creed vivendo feliz e tranquilamente ao lado de Bianca (Tessa Thompson) e a filha Amara (Mila Davis-Kent). É então que Damian Anderson (Jonathan Majors), seu grande amigo de infância e adolescência e que costumava ser um boxeador de grande potencial, ressurge em sua vida após muitos anos na prisão. Isso acaba trazendo de volta antigas e profundas feridas que Adonis queria esquecer, mas que talvez só possam ser cicatrizadas no ringue.

Como podem ver, Rocky Balboa não faz parte da história, marcando a primeira vez que Sylvester Stallone não dá as caras no universo que criou. Mas isso se revela até um alívio, não só porque a história do personagem teve um final digno em Creed II, mas também porque possibilita que este spin-off corra com as próprias pernas, não sendo surpresa que isso ocorra com naturalidade ao longo de Creed III. Adonis, sua família e o núcleo que formam são interessantes, apresentando conflitos palpáveis e humanos, sendo mais do que o suficiente para sustentar a narrativa. Aliás, é bacana ver o roteiro adicionar novas camadas aos personagens, o que contribui até para dar mais peso dramático às histórias daquelas figuras.

As atuações do elenco também são essenciais para isso. É notável, por exemplo, como Michael B. Jordan encarna Adonis Creed com uma segurança ainda maior do que nos filmes anteriores, exibindo uma postura mais forte e decidida em cena, detalhes que pincelam apropriadamente a experiência que o boxeador adquiriu ao longo dos anos. Além disso, sua química com Tessa Thompson novamente cativa o espectador, com os personagens se abrindo um com o outro e soando mais humanos no processo. Thompson, aliás, mais uma vez consegue fazer de Bianca uma mulher que não fica apenas apoiando o protagonista, exibindo personalidade e tendo seus próprios sonhos e frustrações. Para completar, o talentoso Jonathan Majors se revela uma boa adição ao universo da franquia, fazendo de Damian uma figura que mantém o espectador desconfiado, o que consequentemente torna a dinâmica dele com Michael B. Jordan algo cheio de tensão, mesmo quando os personagens se tratam com respeito e cumplicidade.


Enquanto isso, Michael B. Jordan mostra talento também como diretor, dedicando um bom tempo para o desenvolvimento dos dramas dos personagens e conseguindo assim manter o espectador envolvido. Mas ele merece créditos principalmente por conceber cenas de luta que fazem coisas novas dentro da franquia, usando a costumeira câmera lenta tanto para dar impacto aos golpes desferidos quanto para apontar o conhecimento do protagonista, que parece notar oportunidades para nocautear os adversários. Mas o principal momento nesse quesito certamente é aquele que traz um ringue fechado por grades e em uma arena sem público, transmitindo com eficiência como os lutadores ali presentes encaram seu embate. Esses detalhes da direção de Jordan até compensam um pouco o fato de Creed III não trazer grandes surpresas com o desenrolar de sua história, que em alguns momentos ou repete coisas que já vimos em outros exemplares (seja em filmes de Rocky ou de Creed) ou é apenas previsível.

Creed III, em suma, mantém admiravelmente a consistência da franquia. E eu não reclamarei caso o filme seja o capítulo final dessa história, até por ele trazer em seus derradeiros segundos um plano que encanta não só pela beleza da imagem ali contida, mas também porque realmente serve como um belo fim para o arco de seu ótimo protagonista.

Nota: