terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Entre Facas e Segredos


Harlan Thrombey (Christopher Plummer), um renomado escritor de livros policiais, é encontrado morto no dia seguinte a sua festa de aniversário. Mesmo que tudo aponte para um suicídio, o FBI representado pelo detetive Elliott (Lakeith Stanfield) interroga os membros da família Thrombey para esclarecer as coisas. Isso até o detetive particular Benoit Blanc (Daniel Craig) entrar em cena, com suas investigações apontando para um possível homicídio no qual todos passam a ser suspeitos, incluindo a jovem Marta (Ana de Armas), enfermeira do falecido.

Escrito e dirigido pelo excelente Rian Johnson (de filmaços como A Ponta de Um Crime, Looper e Star Wars: Os Últimos Jedi), este Entre Facas e Segredos é uma clássica trama de “whodunnit” (ou “quem matou?”) no estilo daquelas tornadas tão famosas principalmente pela grande Agatha Christie. E Johnson a desenvolve com uma precisão admirável, inserindo gradualmente elementos aparentemente triviais, mas que ganham importância mais adiante (o velho recurso de “pista e recompensa”). Isso ocorre com frequência ao longo da projeção, sendo que o diretor merece créditos por sua sutileza, nunca sentindo necessidade de chamar atenção para o que está fazendo. E se esses truques já ajudam a manter o espectador instigado quanto ao desenrolar da história e sua resolução, o cineasta e o montador Bob Duncsay ainda concebem uma narrativa ágil, que não perde seu ritmo envolvente mesmo quando o roteiro retorna a determinados pontos da trama a fim de deixar claro todo o quebra-cabeça de seu mistério.


Mas além de contar uma história de detetive que segue bem a fórmula do gênero (o que jamais torna o filme previsível), Rian Johnson usa as peças de seu tabuleiro para fazer comentários sociais relevantes. Nisso, é interessante ver ele apontar seu dedo para a ganância infinita da elite, representada pelos Thrombey, mostrando como aquelas pessoas parecem nunca estar satisfeitas com a riqueza que têm. Além disso, Johnson também faz questão de mostrar a hipocrisia dessa elite para com os mais pobres, representados pela figura humilde de Marta, personagem bem tratada por todos, mas apenas enquanto isso convêm a eles, não sendo à toa que ela seja estabelecida não só como a protagonista do filme, mas também como a bússola moral da história.


Marta que, aliás, é vivida com carisma pela ótima Ana de Armas, uma atriz cujo talento tem ficado evidente desde seu belo trabalho em Blade Runner 2049. E o destaque que ela consegue ter aqui é ainda mais notável quando vemos o elenco absolutamente fantástico do qual ela faz parte. Daniel Craig, por exemplo, faz de Benoit Blanc um detetive cuja inteligência e atenção aos detalhes fazem jus a Hercule Poirot e Sherlock Holmes, sendo bom ver que o ator tem cuidado para criar um personagem que tem sua própria personalidade, desde seus trejeitos até seu modo de falar. Já Christopher Plummer aproveita suas cenas como Harlan para encher a tela de calor humano, ao passo que intérpretes como Jamie Lee Curtis, Don Johnson, Michael Shannon, Toni Collette e Chris Evans encarnam a ambiguidade moral dos outros membros da família Thrombey com um brilhantismo ímpar.


O que Entre Facas e Segredos tem de intrigante ele também tem de divertido. E por se tratar de um filme tão bem construído por seu realizador, é possível que suas qualidades sejam potencializadas caso o espectador decida assisti-lo novamente.

Agatha Christie ficaria orgulhosa de Rian Johnson.

Nota:


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

El Camino: A Breaking Bad Movie


(Obs.: O texto a seguir contém spoilers tanto de Breaking Bad quanto de El Camino)

Após se livrar de seus captores graças a ajuda de seu velho sócio Walter White (Bryan Cranston), Jesse Pinkman (Aaron Paul) desbrava pela estrada em um veículo El Camino, vibrando e acelerando loucamente em meio a escuridão da noite, partindo rumo a um futuro que, apesar de não ser bem definido, imaginamos que será melhor para ele. Tratava-se de um final digno para o personagem, que chegava ao último episódio da fantástica Breaking Bad (melhor série que já tive o prazer de assistir) como a maior vítima de Walter (ou melhor, Heisenberg). E mesmo que Jesse estivesse longe de ser um santo, ainda era um personagem que víamos como essencialmente bom.

Pois bem, eis que agora estamos diante de El Camino, filme escrito e dirigido pelo próprio criador de Breaking Bad, Vince Gilligan, e que dá continuidade a história de Jesse, contando o que aconteceu com ele logo depois de sua fuga. É então que passamos a acompanhar o rapaz em um plano para recomeçar sua vida, o que não é nada fácil quando se é um foragido.


El Camino traz basicamente tudo o que fazia de Breaking Bad uma série tão fascinante. Sendo assim, a lógica visual empregada por Vince Gilligan continua àquela que havia sido estabelecida na série, desde o uso de cores até os raccords (cortes que mantêm a continuidade entre um plano e outro) inseridos pontualmente na excelente montagem de Skip Macdonald. É bacana, por exemplo, ver que o local para onde Jesse deseja ir é banhado por uma fotografia mais propensa ao azul, cor que Gilligan nos acostumou a conectar automaticamente a uma certa pureza, e que tanto surgia nas roupas usadas por Skyler White (então interpretada por Anna Gunn). Além disso, Gilligan é hábil ao conceber cenas angustiantes e que colocam à prova a torcida do público pelo protagonista, como quando ele se vê tendo que se esconder de alguma ameaça, o que ocorre com certa frequência ao longo do filme. Mas é impossível não destacar em meio a isso o duelo que ocorre no terceiro ato, que encanta por sua tensão e pela linguagem de faroeste imposta pelo diretor.


Enquanto isso, Aaron Paul volta ao papel de Jesse com o imenso talento que já exibia em Breaking Bad. Quando o personagem surge em um flashback ao lado de Heisenberg, podemos ver o quanto ele mudou ao longo da série até chegar em El Camino, algo muito bem ilustrado pelo ator. O jovem irresponsável e cheio de vida deu lugar a uma figura comedida e traumatizada, cujas cicatrizes físicas refletem também as cicatrizes emocionais que acumulou ao longo do tempo. Trata-se de um trabalho primoroso de um intérprete que, obviamente, conhece seu personagem como a palma de sua mão.

El Camino não deixa de ser uma produção desnecessária, considerando que dá continuidade a algo que já havia sido muito bem finalizado. Mas fico feliz que Vince Gilligan tenha levado o projeto adiante, dando um final ainda mais belo e redentor a um personagem merecedor de algo assim.

Nota:


domingo, 6 de outubro de 2019

Coringa


Um dos papéis que a Arte exerce, em maior ou menor grau, é o de refletir aspectos do mundo em que vivemos, podendo inclusive tirar o público de sua zona de conforto, nos colocando diante de realidades bem diferentes daquelas que vivemos no nosso dia-a-dia. Isso inclui até mesmo os lados mais perversos da Humanidade, algo que inúmeras obras já exploraram, erguendo um espelho cujo reflexo muitas vezes não é algo particularmente agradável de encarar. É essa linha que Todd Phillips (outrora responsável pela série Se Beber, Não Case!) segue neste Coringa protagonizado por Joaquin Phoenix.

Desenvolvendo uma história de origem para um dos vilões mais famosos dos quadrinhos e que tanto já foi retratado no cinema, Coringa nos apresenta a Arthur Fleck, um aspirante a comediante que, apesar de seus esforços, está longe de ser uma figura mentalmente saudável ou próxima de realizar seus sonhos. E é acompanhando sua realidade nenhum pouco privilegiada e a forma como o mundo ao seu redor interage com ele (e vice-versa) que vemos um homem, aos poucos, se entregar a própria psicopatia.


Em primeiro lugar, é preciso dizer que o estudo de personagem proposto por Todd Phillips em momento algum tenta justificar a violência cometida pelo protagonista. O que o diretor busca fazer é entender como um indivíduo como Arthur pode se tornar alguém tão temível, algo que me fez lembrar um pouco o que José Padilha fez ao contar a história de Sandro do Nascimento no excepcional Ônibus 174. Com isso em mente, Phillips é hábil ao mostrar de maneira bastante lógica como o descaso das pessoas com uma parcela de seu povo, em um sistema social que já deixa muitos sem qualquer tipo de suporte enquanto figuras poderosas ficam cada vez mais poderosas, pode dar um empurrãozinho para que alguém possa ir de encontro ao seu lado mais sombrio.

Seguindo essa proposta, Phillips e o diretor de fotografia Lawrence Sher merecem créditos por retratarem a ambientação em Gotham City através de uma paleta de cores dessaturada, estabelecendo assim não só o tom mais pesado da narrativa, mas também a própria pobreza das condições de vida do protagonista. É uma lógica que muda por completo quando vamos, por exemplo, para o interior de um cinema frequentado pelas pessoas mais ricas da cidade, local cuja grandeza contrasta perfeitamente com o claustrofóbico e precário apartamento que Arthur divide com sua mãe, Penny (a ótima Frances Conroy).


Mas boa parte da eficiência de Coringa se deve a Joaquin Phoenix. Sendo ele o protagonista do longa, com um arco dramático muito bem definido, é claro que o ator constrói algo completamente diferente dos vilões vividos por Jack Nicholson e Heath Ledger (os dois mais lembrados quando falamos das versões cinematográficas do personagem). Presente em todas as cenas do filme, o ator encarna a trajetória de Arthur Fleck com brilhantismo, concebendo um sujeito até indefeso inicialmente, aspecto que faz a transformação dele ser ainda mais forte e angustiante, sendo notável também sua postura em cena, que claramente se torna mais segura e determinada à medida que ele abraça sua natureza violenta.

Se um dos detalhes que tornam o Coringa um personagem tão icônico (seja nos quadrinhos ou no cinema) é o fato de ele não ter uma origem bem definida, acaba sendo até irônico quando artistas concebem histórias interessantes exatamente sobre isso. E o que Todd Phillips e sua equipe realizam neste filme certamente é um desses casos, apresentando uma forte representação da degradação humana.

Nota:


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Brinquedo Assassino (2019)


Muitas vezes, remakes e reboots não servem apenas para recomeçar ou reaproveitar uma ideia que encontrou algum sucesso, podendo também atualizá-la para os novos tempos. Este novo Brinquedo Assassino se encaixa nisso. Chegando aos cinemas três décadas depois do original comandando por Tom Holland, o filme tira de cena o serial killer Charles Lee Ray (interpretado e dublado por Brad Dourif) ao preferir lidar com um boneco cuja inteligência artificial é programada para não ter quaisquer tipos de limites. Chamado de Chucky (e dessa vez dublado pelo grande Mark Hamill), o brinquedo chega às mãos do jovem Andy (Gabriel Bateman) e de sua mãe Karen (Aubrey Plaza), dando início a um rastro de sangue ao redor deles.

Sendo assim, este Brinquedo Assassino, de certa forma, não deixa de lembrar um pouco Pequenos Guerreiros, a pequena pérola que Joe Dante dirigiu na década de 1990, com a diferença óbvia de que aqui a proposta não é nada aventureira. E apesar de não ser exatamente original e de tirar tanto a natureza humana do vilão quanto boa parte de seu bizarro senso de humor, o conceito de inteligência artificial por trás do novo Chucky é relativamente bem aproveitado, com o diretor Lars Klevberg mostrando o alcance da ameaça representada pelo personagem, algo que até vira motivo de piada (“É assim que todo filme de apocalipse robótico começa”, alguém diz em determinado momento). Mas se isso representa uma mudança dentro da franquia, o gosto do vilão pela violência se mantém o mesmo, com suas ações dessa vez encontrando um pouco de inspiração até em O Massacre da Serra Elétrica.

Mas ainda que chame a atenção nesses detalhes, Brinquedo Assassino essencialmente aposta em uma narrativa que não se esforça para sair do lugar-comum, trazendo clichês de terror que cansam de tão batidos e uma trama que não escapa da previsibilidade. O que temos, no fim, acaba sendo um longa que até diverte moderadamente, mas que nada faz para deixar marcas maiores no espectador.

domingo, 19 de maio de 2019

John Wick 3: Parabellum


Às vezes analisar uma obra de arte pode ser engraçado, ainda mais quando se tem em mente a ideia de que não há um jeito certo de conceber uma. Certos filmes podem partir de um fiapo de trama e ainda assim funcionar maravilhosamente, conseguindo se sustentar com uma proposta muito bem executada. John Wick 3: Parabellum é uma dessas obras.

Tendo início cerca de 40 minutos depois de onde o segundo filme havia nos deixado, John Wick 3 encontra o personagem-título (interpretado mais uma vez com segurança e determinação por Keanu Reeves) fugindo de praticamente todos os membros da organização assassina da qual ele fazia parte. E é assim que podemos resumir a trama, que então passa a jogar o protagonista em uma série de sequências de ação que aproveitam ao máximo as habilidades dele e de seus adversários.

É um verdadeiro deleite acompanhar cada um desses embates, já que se tem algo que podemos dizer sobre a trilogia de John Wick é que ela estabeleceu seu diretor, Chad Stahelski (e o parceiro dele nos longas anteriores, David Leitch, que veio a fazer Atômica e Deadpool 2), como uma revelação do cinema de ação. Fugindo completamente da escola Michael Bay, Stahelski conduz as cenas deixando sempre claro para o espectador a mise-en-scène e o que está acontecendo em cena, apostando frequentemente em planos mais longos que privilegiam as excepcionais coreografias de seus atores. E cada uma dessas sequências empolga em maior ou menor grau, impressionando também por sua variedade, utilizando facas, espadas, cavalos, cães, motos e o que quer que esteja ao alcance dos personagens. Além, claro, das costumeiras armas, que rendem confrontos de gun fu (uma mescla de arte marcial e armas) que certamente deixariam John Woo orgulhoso.

Tudo isso é ancorado em um universo rico em seus mínimos detalhes. Se John Wick 2 já havia tratado de expandir o submundo dos assassinos, divertindo com suas regras e as fachadas que mantêm ele funcionando entre os civis, este terceiro capítulo não faz diferente, apresentando novas hierarquias e sabendo até mesmo explorar o próprio respeito que os assassinos têm uns pelos outros, especialmente pelo protagonista. E o próprio design de produção merece destaque em meio a isso, dando vida a lugares que estabelecem rapidamente a grandeza e a sofisticação daquele universo, como o teatro regido pela Diretora (vivida por Angelica Huston), além do conhecido Hotel Continental dos longas anteriores, que volta a ser plano de fundo para parte da ação através de novos cenários, merecendo destaque especial a sala de espelhos do terceiro ato.

É seguro dizer que, assim, John Wick 3 surge não como um dos grandes filmes de ação do ano, mas sim como um dos grandes filmes do ano. E honestamente, eu não me importaria de ver mais exemplares da série.



segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Creed II


Maniqueísta, politicamente tolo e, muitas vezes, simplesmente ridículo, Rocky IV veio a ser o pior exemplar da série protagonizada pelo Rocky Balboa de Sylvester Stallone. No entanto, é uma surpresa ver que, mesmo tendo se passado mais de 30 anos desde seu lançamento, o filme continue sendo bem aproveitado pela franquia. Ao se apresentar como um spin-off focado no filho de Apollo Creed (personagem de Carl Weathers) e que coloca Rocky como seu treinador, o ótimo Creed se viu pegando um evento importante daquele longa irregular (a morte de Apollo) e conseguiu usá-lo na concepção do novo protagonista da série, Adonis Creed (Michael B. Jordan), cuja vida foi impactada pelo ocorrido. Essa ideia é retomada neste Creed II, que decide ir mais fundo na ferida de Adonis, exibindo no processo toda a humanidade que faltou a Rocky IV.

Em Creed II, reencontramos Adonis Creed seguindo com sua carreira de boxeador, agora com uma vida ainda mais bem estabelecida ao lado de Bianca (Tessa Thompson), principalmente depois de conquistar o título de campeão mundial. E claro que Rocky, o melhor amigo de seu pai, acompanha tudo isso de perto como um bom mentor e figura paterna. Mas toda a rotina de Adonis acaba balançando quando Viktor Drago (Florian Monteanu) surge em seu caminho, desafiando-o pelo título e tendo o apoio do pai, Ivan (Dolph Lundgreen), exatamente o responsável pela morte de Apollo Creed.


O primeiro ato do filme se apresenta logo como a parte mais problemática da narrativa. Ao reapresentar seus personagens e organizar as peças da trama, o roteiro se desenrola de maneira excessivamente rápida, a ponto de momentos importantes não terem o peso que poderiam. Assim, quando Adonis conquista o título de campeão, a cena parece ocorrer cedo demais por conta de seu preparo superficial. Nisso, o filme também não deixa de recorrer a alguns diálogos expositivos para situar o público com relação ao contexto atual dos personagens (é dessa forma que ficamos sabendo, por exemplo, o que ocorreu com o câncer de Rocky, visto no longa anterior).

Mas quando o roteiro passa a desenvolver o ponto principal da trama, Creed II engrena admiravelmente. A ideia de colocar Adonis enfrentado o filho de Ivan Drago tem um potencial interessante devido a tragédia que os conecta. E não é à toa que o longa seja menos sobre o confronto entre os dois rivais e mais sobre as relações deles com as pessoas que amam, exatamente o ponto no qual eles encontram suas motivações. É nesses detalhes, inclusive, que o diretor estreante Steven Caple Jr. mostra sensibilidade para humanizar os personagens, algo que naturalmente faz com que nos importemos com eles e ajuda a dar peso dramático para o que ocorre no ringue.


Aliás, já que mencionei o ringue, vale dizer que Caple Jr. também é competente na condução das lutas, impondo um ritmo envolvente e sempre deixando clara a mise-en-scéne, merecendo destaque óbvio o embate derradeiro entre Adonis e Viktor, com toda sua carga emocional. E mesmo utilizando o slow motion exageradamente nessas sequências, o diretor ao menos consegue usar isso para mostrar o peso dos golpes desferidos. Para completar, o visual do filme merece créditos pela maneira como diferencia os núcleos narrativos. Enquanto a vida de Adonis, Bianca e Rocky surge na maior parte do tempo com cores quentes e visualmente belas, os Drago aparecem na Ucrânia sendo rodeados por cores frias e opressivas. O notável é que essa lógica não é utilizada para marcar a natureza heroica de uns e a vilania de outros, mas sim para estabelecer a realidade confortável e afetuosa vivida pelo protagonista e sua família, ao passo que Viktor e Ivan não conseguem evitar de serem movidos pelas mágoas e decepções que sofreram ao longo de suas vidas.


Voltando ao papel de Adonis Creed, Michael B. Jordan mostra que, por mais que o personagem tenha provado seu potencial como lutador, ele ainda tem muito o que aprender, de forma que sua arrogância e sua imaturidade se põem como suas adversárias em alguns momentos, o que torna recompensador acompanhar seu crescimento como um homem determinado a seguir passos diferentes de seu lendário pai. E se Tessa Thompson novamente faz de Bianca uma mulher que apoia o amado sem desistir de seus próprios sonhos e objetivos, Sylvester Stallone retorna a Rocky Balboa exibindo a sensibilidade costumeira do velho lutador, que enriquece a tela sempre que surge com seu afeto e sua humanidade (caso esta seja mesmo a última aparição de Stallone no papel, trata-se de uma despedida à altura de sua principal criação). Fechando o elenco, Dolph Lundgreen finalmente tem a chance de transformar Ivan Drago em um ser humano (em Rocky IV, ele parecia um androide caricatural), fazendo dele alguém que sonha em recuperar o prestígio que teve uma vez, enquanto que Florian Munteanu torna Viktor uma figura que não é um mero fantoche do pai, claramente tendo suas próprias ambições e motivações, ainda que na maior parte do tempo ele chame mais atenção pela imponência física. E vale dizer que pai e filho protagonizam no terceiro ato um dos momentos mais tocantes da franquia.

Seja continuando ou encerrando trajetórias, Creed II é outro capítulo digno de sua série. Isso por si só já é satisfatório, mas ganha uma camada extra por se tratar de um universo que já tem mais de 40 anos e cujos personagens souberam conquistar o carinho do público.

Nota:


quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Homem-Aranha no Aranhaverso


Desde que o Homem-Aranha começou a fazer sucesso nos cinemas (e lá se vão 17 anos), nenhum filme do personagem se esforçou tanto para fazer coisas novas como ocorre neste Homem-Aranha no Aranhaverso. Depois de seis longas live-action focados em Peter Parker, que por sua vez já teve três encarnações cinematográficas diferentes, eis que agora nos deparamos com uma obra que, além de ser uma animação, prefere colocar o clássico protagonista da franquia como coadjuvante, abrindo espaço para um jovem negro e seus próprios dilemas em meio a um universo incrivelmente vasto. Tratam-se de ideias válidas tanto em termos de representatividade entre os filmes de super-heróis (e que ajudou Pantera Negra a ser um marco em 2018) quanto para conter uma possível saturação do público com a franquia. E tais ideias ainda funcionam maravilhosamente para a construção de uma produção absolutamente espetacular.

Em Homem-Aranha no Aranhaverso somos apresentados ao humilde Miles Morales (voz de Shameik Moore), que se vê tendo que se adaptar à nova escola, tentando não decepcionar sua família, que tanto aposta em seu futuro. Se isso já seria pressão suficiente para um adolescente, as coisas pioram quando ele é mordido por uma aranha e ganha poderes semelhantes aos de seu herói favorito, o Homem-Aranha (Chris Pine). E um dos problemas que acabam surgindo a partir disso é Wilson Fisk, o Rei do Crime (Liev Schreiber), que quer abrir um portal para outra dimensão a qualquer custo, ainda mais depois de tirar o Homem-Aranha de seu caminho. Para detê-lo, Miles conta com a ajuda de heróis aracnídeos de outras dimensões, entre eles um Peter Parker mais experiente e desiludido (e dublado por Jake Johnson).


O próprio conceito do tal Aranhaverso e seus vários heróis já é um prato cheio para que o roteiro explore coisas novas, divertindo com a concepção dos personagens e a influência que suas respectivas realidades exercem neles, desde o Homem-Aranha versão noir (dublado por Nicolas Cage), que surge em preto e branco e com uma constante ventania a sua volta, até o Porco-Aranha (John Mulaney), que parece ter saído direto do universo dos Looney Tunes. No entanto, o roteiro não utiliza o Aranhaverso apenas para isso, sabendo aproveita-lo também nos dramas vividos pelos personagens, em especial Miles e seu desejo de encaixar todas as peças de sua vida (e se encaixar nelas no processo).

É ao seguir esse caminho, aliás, que Homem-Aranha no Aranhaverso encontra uma forma de abordar a essência do super-herói do título (seja qual for a pessoa por trás da máscara). Sendo uma das figuras mais humanas dos quadrinhos, algo que facilita sua identificação com o público, o Homem-Aranha mostra, entre outras coisas, que mesmo heróis com grandes poderes e responsabilidades podem exibir medos e inseguranças diante do cotidiano que levam. E apesar de Miles ser o foco principal aqui, sendo até inspirador acompanhar o arco-dramático que ele percorre, podemos ver esses detalhes em maior ou menor grau em cada um dos heróis e heroínas que surgem em cena, que assim são humanizados e fortalecidos.


Mas o encantamento proporcionado pelo filme não para por aí, já que o trio de diretores formado por Peter Ramsey, Bob Persichetti e Rodney Rothman ainda concebe um visual deslumbrante com suas cores vibrantes, sendo que a narrativa não deixa de se aproximar dos trabalhos das irmãs Wachowski e de Edgar Wright em seus fantásticos Speed Racer e Scott Pilgrim Contra o Mundo. Seja explorando os animes japoneses, o preto e branco típico dos jornais ou ao exibir na tela pequenos quadros descritivos e onomatopeias, Homem-Aranha no Aranhaverso abraça com gosto suas origens quadrinísticas, sendo fascinante notar também como alguns detalhes das cenas por vezes aparecem com suas cores desbotadas, reforçando a impressão de estarmos vendo uma história em quadrinhos se desenrolando diante de nossos olhos. E o fato de a montagem apostar pontualmente em telas divididas e em transições de cenas que simulam páginas sendo viradas é apenas a cereja do bolo.

Conseguindo divertir e empolgar ao mesmo tempo que conquista o público com seu coração e sua energia contagiante, Homem-Aranha no Aranhaverso se estabelece desde já como uma das melhores adaptações de seu super-herói, que mostra ter ainda muito potencial a ser explorado.

Obs.: Há uma cena depois dos créditos finais.



Nota:

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Assunto de Família


“É preciso parir um filho para ser mãe?”, questiona um personagem deste Assunto de Família em determinado momento.

Essa pergunta ajuda a sintetizar a reflexão que o diretor Hirokazu Koreeda propõe ao longo da história. O que faz as pessoas serem pais, filhos, avós, netos ou irmãos? O laço sanguíneo seria mais importante que o laço afetivo? Afinal, o que forma uma família?

Assunto de Família nos coloca diante do grupo formado por Osamu (Lily Franky), sua esposa Nobuyo (Sakyra Andô), os jovens Aki (Mayu Matsuoka) e Shota (Jyo Kairi) e a idosa Hatsue (Kirin Kiki), pessoas que parecem ter simplesmente encontrado umas às outras ao longo da vida, e que levam uma existência bastante humilde alimentada, entre outras coisas, por sua rotina de roubar produtos de mercadinhos. Ao apresenta-los, o filme passa a acompanhar o cotidiano desses personagens e sua dinâmica familiar, ainda mais depois que eles encontram a pequena Yuri (Miyu Sasaki) aparentemente abandonada e a acolhem como nova membro da família.

Koreeda não nos mostra como os personagens se juntaram, preferindo dar breves informações para que imaginemos como isso aconteceu, o que prova ser suficiente. Mas este não é um detalhe que importe tanto, já que o foco do diretor é outro. Sendo assim, com uma sensibilidade ímpar e um elenco absolutamente maravilhoso, Koreeda exibe o carinho que aquelas pessoas têm umas pelas outras apesar de todas as dificuldades que enfrentam, se apoiando e compartilhando um amor que parecem não ter tido originalmente com seus parentes sanguíneos. Dessa forma, é quase inevitável ser conquistado pelos personagens e tocado por seus risos e suas lágrimas, enquanto cada um tenta cumprir sua função familiar da melhor maneira possível. Claro que poderíamos ver a rotina um tanto fora-da-lei que eles levam como algo questionável e nada saudável, mas no fim isso traz mais camadas de complexidade à dinâmica entre eles e às questões levantadas pelo diretor, contribuindo para gerar um peso dramático capaz de balançar o coração do público e que chega ao ápice no terceiro ato.

Ao final de Assunto de Família, resta apenas processar o encantamento proporcionado pelos personagens e a riqueza que eles dão a narrativa e suas discussões. Além, claro, de concluir que a Palma de Ouro do último Festival de Cannes realmente ficou em ótimas mãos.



Nota:

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Bumblebee


Não sou apreciador da série Transformers, tendo passado raiva a cada novo exemplar que se provava uma tortura (o último, inclusive, figurou no topo da minha lista de piores de 2017). Mas mesmo que essas experiências não tenham sido agradáveis, eu procurei entrar nesses filmes com a mente aberta, na esperança de ver algo interessante (como busco fazer com qualquer obra). Comento isso porque chegamos agora a Bumblebee, o sexto longa que a franquia lança em pouco mais de uma década, e essa esperança finalmente foi recompensada.

Situado em 1987, Bumblebee basicamente foca na chegada do personagem-título a Terra, quando ele tenta estabelecer um refúgio para os Autobots em meio a dura guerra intergaláctica entre eles e os Decepticons, tornando-se no processo o novo fusca amarelo da jovem Charlie (Hailee Steinfeld), com quem forma um forte laço de amizade enquanto ambos se ajudam a lidar com seus problemas. Partindo dessa premissa, o filme não deixa de exibir algumas coisas que parecem inerentes a franquia, de forma que ao longo da projeção vemos a família da protagonista soar irritante durante boa parte do tempo, além do fato de o roteiro provar de uma vez por todas que qualquer setor governamental que surge nesses filmes é conduzido por pessoas estúpidas.

Por outro lado, apesar de as cenas de ação serem repletas de efeitos visuais e explosões, dessa vez é possível se importar com o que ocorre na tela, ao contrário do que acontecia anteriormente. Isso se deve, principalmente, por conta de o diretor Travis Knight (o mesmo do ótimo Kubo e as Cordas Mágicas) ter uma coisa que Michael Bay não teve nos longas anteriores: noção. Sendo assim, Knight consegue criar sequências grandiosas e bombásticas, mas sem esquecer de envolver o público. Nisso é preciso destacar a sensibilidade com a qual ele trata a relação entre Charlie e Bumblebee, aspecto claramente inspirado por produções como E.T.: O Extraterrestre e O Gigante de Ferro e que contribui para que torçamos pelos carismáticos personagens.

O que se vê em Bumblebee é algo inédito na franquia Transformers no cinema: um filme que tem coração. E é uma pena que os cinco exemplares anteriores tenham desperdiçado o potencial que vemos aqui.

Obs.: Há uma cena durante os créditos finais.


Nota: