(Crítica originalmente publicada no Papo de Cinema)
É difícil não se lembrar de Cidadão Kane assistindo a Grilhões do Passado, filme lançado por Orson Welles em 1955. Seja pela forma como o diretor constrói a narrativa ou por certos aspectos da trama, a obra-prima que marcou a estreia (e a carreira) do realizador ecoa neste trabalho quase inerentemente. Mas, mesmo com esse detalhe (que nem chega a ser exatamente um problema), essa produção pouco lembrada de Welles é interessante por suas próprias virtudes.
O roteiro escrito pelo próprio diretor nos coloca diante de Guy Van Stratten (Robert Arden). Antes de ser preso por contrabando de tabaco, ele e a namorada, Mily (Patricia Medina), encontram um homem prestes a morrer. O moribundo lhes dá um nome supostamente muito valioso: Gregory Arkadin. Ao sair da prisão, Guy descobre que o mistério em suas mãos se refere a um magnata multimilionário (interpretado por Welles), que ele conhece após aproximar-se de sua filha, Raina (Paola Mori). Tendo Arkadin feito um relatório completo sobre Guy, este ganha do próprio magnata a chance de dar o troco, recebendo a tarefa de investigar sua vida, mas sem saber do perigo em que pode estar se metendo.
“Um grande e poderoso rei perguntou a um poeta: ‘O que posso dar-lhe, de tudo o que possuo?’. Sabiamente, este respondeu: ‘Qualquer coisa, senhor... Exceto seu segredo’”. Welles abre Grilhões do Passado com esses intertítulos, que acabam se mostrando muito significativos para o que vemos ao longo do filme. Criando um verdadeiro mistério em volta de Gregory Arkadin, personagem que leva um bom tempo para aparecer na tela, o longa mantém o espectador intrigado, não só sobre quem ele é, mas também com relação a como Guy Van Stratten chega ao nível de urgência visto logo em sua primeira cena, segmento, aliás, responsável por acender o pavio da narrativa não linear.
É então que o diretor passa a explorar, através da investigação do protagonista e suas consequências, a questão da imagem ostentada. Por mais poderosa que a pessoa seja, ela pode acabar manchada por possíveis fatos obscuros. Saber esses mistérios não é vantagem para ninguém considerando que a pessoa pode ser capaz de qualquer coisa para se preservar. Os segredos podem fazê-la agir de maneira irracional quando menos se espera, e o momento-chave em que Arkadin conta a breve história sobre um escorpião e um sapo é brilhante nesse sentido.
Orson Welles não tem medo de abraçar a moral corrompida de seus personagens, e não é à toa que ele preenche a tela constantemente com sombras, exaltando esse aspecto ao mesmo tempo em que cria uma atmosfera tensa entre eles, como na cena em que Guy e Arkadin conversam no quarto de Raina. Aliás, se Guy nas mãos de Robert Arden acaba sendo um protagonista bom o suficiente para nos manter envolvidos em sua jornada investigativa, Gregory Arkadin rouba quase todas as cenas graças a presença onipotente de Welles, que cria uma figura imprevisível. Boa parte da riqueza de Grilhões do Passado vem da inquietude existente entre os dois personagens, que quase entram numa espécie de disputa moral.
Conduzido sempre com segurança e contando com um grande terceiro ato, cuja agilidade é perfeita para encarar as situações que culminam nas ações dos personagens, Grilhões do Passado poderia ser mais lembrado. Se não é uma obra-prima como Cidadão Kane, ainda se mostra uma produção admirável, que contribui para o brilho da filmografia de seu renomado realizador.
Nota:
Nenhum comentário:
Postar um comentário