Maratonar
filmes é divertido, mas maratonar filmes durante um dos principais festivais do
país, correndo de um cinema a outro, é incomparável.
E vamos
lá para os comentários sobre mais cinco filmes conferidos na Mostra de São Paulo.
Devagar (Tu man nieko neprimeni, 2023), de Marija Kavtaradzé:
Candidato
da Lituânia ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Devagar apresenta a
dançarina Elena (Greta Grineviĉiūté) e o intérprete de linguagem de sinais
Dovydas (Kęstutis Cicénas). Após se conhecerem em um trabalho, os dois iniciam
um romance. No entanto, Dovydas desde o princípio deixa claro ser assexual,
algo que com o tempo vira um entrave para o casal.
Acompanhamos,
então, um romance que se destaca pela honestidade. Ainda que possamos prever os
tipos de conflito que irão surgir em algum momento entre os personagens, a conexão
do casal é forte desde o início, muito por eles se abrirem totalmente um para o
outro, em um relacionamento sensível e tratado com delicadeza pela diretora Marija
Kavtaradzé. E as atuações de Greta Grineviĉiūté e Kęstutis Cicénas merecem vastos
elogios, já que a dupla não só tem carisma e uma química em cena invejável, mas
também faz de Elena e Dovydas figuras incrivelmente humanas.
Nota:
Todos Amam Jeanne (Tout le monde aime Jeanne, 2023), de Céline Devaux:
Jeanne
(Blanche Gardin) é uma mulher muito admirada, mas no momento se sente no fundo
do poço quando vê seu projeto de sustentabilidade ir, literalmente, por água
abaixo. Humilhada e falida, ela vai a Lisboa com a ideia de vender o
apartamento deixado por sua falecida mãe, encontrando no caminho um antigo
colega, Jean (Laurent Lafitte), que passa a ser uma presença frequente em seu dia-a-dia.
Todos
Amam Jeanne é um tanto formulário e, por isso, acaba sendo previsível em
vários pontos de sua trama e no arco de sua protagonista. Mas é um filme no
qual a diretora Céline Devaux mostra presar muito pelo bom humor, concebendo
uma narrativa leve e que diverte ora com os personagens, ora com certas sacadas
do roteiro. As inserções animadas que representam os pensamentos de Jeanne, por
exemplo, arrancam boas risadas, mesmo que à vezes surjam exageradamente. Já Blanche
Gardin carrega o filme com segurança interpretando a protagonista, mesmo que seja
um pouco ofuscada por Laurent Lafitte e o jeito totalmente cara de pau de seu
Jean.
Nota:
Pedágio (2023), de Carolina Markowics:
Tem
sido comum os jornais trazerem notícias de pessoas homoafetivas que tiram a
própria vida após se submeterem a algum processo de “cura”, geralmente
propagado por pastores cujo maior interesse está no dinheiro que recebem e não
no bem-estar do próximo. Pedágio parte exatamente dessa ideia de “cura” para
desenvolver a história de uma mãe e seu filho.
No
filme, a diretora Carolina Markowicz nos apresenta a Suellen (Maeve Jinkings), que
trabalha em um pedágio e é mãe de Tiquinho (Kauan Alvarenga), rapaz homossexual
e que não tem vergonha de sua natureza. Mas a mãe infelizmente tem, e resolve
enviá-lo para o tratamento de um pastor estrangeiro que está sendo promovido
por uma igreja. Mas para poder pagar por isso, ela entra em negócios ilícitos
com o namorado (Thomas Aquino).
Uma
das coisas bacanas de Pedágio é que, ao mesmo tempo em que ridiculariza
tudo o que envolve o tal tratamento de cura, Carolina Markowicz faz questão de cutucar
a hipocrisia daqueles que geralmente vendem essa ideia como algo válido,
indivíduos que quando analisados de perto não têm nada de santos e puros, mas ainda
assim adoram condenar o outro apenas por sua sexualidade. Além disso, a relação
entre mãe e filho no filme é retratada delicadamente, já que tratam-se de
pessoas que claramente se amam e se importam uma com a outra, apesar de a mãe
não aceitar a natureza do filho. E Maeve Jinkings e Kauan Alvarenga dão vida a
essa dinâmica com a sensibilidade necessária.
Nota:
Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne, 2023), de Nuri Bilge Ceylan:
Logo
após as mais três horas de duração deste Ervas Secas, pairou em minha
cabeça a dúvida quanto ao número de páginas que o roteiro do filme teria. Não
por conta da duração, mas sim por ele contar com diálogos, diálogos, diálogos e
mais diálogos (respondendo a dúvida, aparentemente o roteiro tinha mais de 500
páginas). Mas apesar de parecer, isso que falei está bem longe de ser uma
crítica, já que o diretor Nuri Bilge Ceylan faz dos diálogos um dos pontos
fortes do filme.
A
história mostra o professor Samet (Deniz Celiloğlu), que mora junto com seu
colega Kenan (Musab Ekici) e dá aula em uma escola em Anatolia, tendo como
objetivo se transferir de volta para Istambul. Mas as coisas passam a não dar
muito certo quando duas alunas acusam os sujeitos de terem abusado delas. Ao
mesmo tempo, Samet e Kenan conhecem Nuray (Merve Dizdar), professora que
sobreviveu a um ataque terrorista e pela qual ambos passam a se interessar.
Pela
base da trama, Ervas Secas parece que será um filme que colocará seus personagens
rumo a algum julgamento, mesmo que seja um julgamento do próprio público. Mas a
verdade é que Nuri Bilge Ceylan usa isso mais como ponto de partida para o
longa, que tem interesse maior em trazer Samet, Kenan e Nuray discutindo
política, filosofia, suas visões de mundo, seus desejos e até sua própria
existência, com os dramas pessoais dos personagens funcionando para mostrar
como tudo isso se molda e pode mudar a partir de nossas vivências. E talvez Ervas
Secas pudesse ser uma experiência maçante (afinal, grande parte do filme é
composta por longos planos de personagens conversando), mas Nuri Bilge Ceylan
consegue dar dinamismo a narrativa, ao passo que os diálogos se revelam
brilhantes e universais.
Nota:
Tiger Stripes (2023), de Amanda Nell Eu:
Candidato
da Malásia ao Oscar de Melhor Filme Internacional, o longa de estreia de Amanda
Nell Eu apresenta a jovem Zaffan (Zafreen Zairizal), que está começando a passar
pelas mudanças causadas pela puberdade. Mas aos poucos as mudanças se revelam diferentes,
chegando a níveis sobrenaturais.
Sutileza
é algo que não faz parte da narrativa de Tiger Stripes, e ao longo da trama
o filme usa as transformações de Zaffan como uma alegoria referente a forma como
ela se sente na realidade conservadora que vive. Uma realidade na qual até mesmo
fazer vídeos para as redes sociais soa como desafio a autoridades (ao menos quando
meninas fazem). Mas apesar de lidar com uma temática séria e montar uma narrativa
que flerta muito com o terror, Amanda Nell Eu faz um filme caloroso e que diverte,
principalmente quando resolve abraçar um lado mais trash (como ocorre no
terceiro ato), ainda que no fim isso tire qualquer peso que a obra poderia ter.
Nota:
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