segunda-feira, 23 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - 3ª Parte

Particularmente falando, a leva de filmes desse post resultou em uma das maiores correrias dessa Mostra de São Paulo até agora. Os quatro filmes foram assistidos em quatro cinemas diferentes. No entanto, correrias como essa são o mais próximo que estou chegando de turistar por São Paulo, considerando que não estou tendo tempo algum para passear e conhecer a cidade. Mas é algo tem valido muito a pena, sendo que dessa vez gostei de todos os filmes.

Enfim, eis os comentários sobre mais quatro obras exibidas na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Uma Vida de Ouro (Or de Vie, 2023), de Boubacar Sangaré:

“Se eu tivesse 3 milhões de dólares já iria embora agora”, diz de maneira bem humorada um dos trabalhadores que aparecem neste Uma Vida de Ouro, documentário de Boubacar Sangaré. É um momento que de certa forma resume bem o filme, já que é possível notar a desesperança de quem gostaria de mudar de vida, mas sabe que dificilmente isso irá ocorrer. No longa, o diretor mostra o dia-a-dia de quem trabalha em uma região de mineração na Burkina Faso, focando principalmente no jovem Rasmané.

A partir daí acompanhamos Rasmané e seus colegas sendo explorados ao mesmo tempo que vivem e trabalham precariamente. À noite, eles dormem quase empilhados uns em cima dos outros, ao passo que de dia eles descem e sobem 100 metros em uma mina. Mas algo que Boubacar Sangaré mostra é que todos ali são dominados por um sistema determinado a mantê-los onde estão, fazendo os trabalhadores terem de seguir essa rotina de pobreza enquanto buscam manter acesa a esperança de uma vida melhor.

Uma Vida de Ouro acaba se tornando bastante repetitivo depois de um tempo, mas é um documentário que acaba valendo por mostrar uma realidade que nem sempre ganha atenção.

Nota:


Fancy Dance (2023), de Erica Tremblay:

Não satisfeito em ter ido ver Lily Gladstone em uma atuação absolutamente memorável em Assassinos da Lua das Flores, resolvi assistir também ao filme estrelado por ela que está na programação da Mostra. Em Fancy Dance, Gladstone dá vida a Jax, que está cuidando de sua sobrinha, Roki (Isabel Deroy-Olson), desde que sua irmã sumiu semanas atrás, um caso que a polícia parece não ter interesse em resolver. Mas quando a assistência social ameaça tirar de Jax a custódia de Roki, ela passa a se esforçar ainda mais para descobrir o paradeiro da irmã.

A trama de investigação em Fancy Dance não deixa de ser comum. Mas o diferencial do longa é a atenção que a diretora Erica Tremblay faz questão de dar a cultura indígena de seus personagens, que assim como a realizadora fazem parte da nação Seneca-Cayuga (Tremblay inclusive assina o filme com seu nome indígena, Qdewayę:sta’). Sendo assim, ao mesmo tempo que é envolvente acompanhar Jax tentando achar sua irmã, é muito bacana quando a história faz pausas para mostrar rituais importantes da cultura dos personagens. É um aspecto que também contribui muito para a riqueza da relação entre Jax e Roki, que é repleta de respeito e afeto. E Lily Gladstone faz um ótimo trabalho ao trazer força e determinação a uma mulher que sabe pertencer a um mundo que negligencia seu povo o quanto pode.

Nota:


A Sobrevivência da Bondade (The Survival of Kindness, 2022), de Rolf de Heer:

Num mundo justo, Mwajemi Hussein receberia uma tonelada de prêmios de atuação por seu trabalho neste A Sobrevivência da Bondade. Em um filme praticamente sem diálogos, a atriz (que nunca havia atuado antes) tem como seus principais recursos o olhar e o carisma para fazer uma composição de personagem brilhante. A personagem à principio sem nome – nos créditos finais ela é chamada apenas de BlackWoman – vive em uma distopia, sendo enjaulada no meio do deserto por figuras que usam máscaras de gás e representam um poder autoritário. Mas ao conseguir escapar, BlackWoman começa a resgatar um mínimo de dignidade em um mundo desolado.

Autoritarismo, intolerância, colonialismo. A alegoria que ganha vida pelas mãos do diretor Rolf de Heer toca nessas questões com muita clareza, conseguindo ainda envolver o espectador mesmo investindo em um ritmo mais cadenciado na narrativa, algo que serve também para que ele mostre com calma o universo cheio de cenários desesperadores. Mas ainda que lide com temas pesados, A Sobrevivência da Bondade se mostra capaz de causar o riso. E aqui cito mais uma vez o trabalho de Mwajemi Hussein, que faz de BlackWoman uma personagem capaz de nos fazer sorrir em meio ao caos, seja com meras reverências a manequins, seja com interjeições de impaciência. Mas acho que o que define mesmo a atuação maravilhosa da atriz é seu olhar generoso, e que se mantém assim ao longo de praticamente todo o filme e faz o espectador ter um carinho quase imediato por ela.

Um ótimo filme e uma performance central que certamente é uma das melhores do ano.

Nota:


O Mal Não Existe (Aku Wa Sonzai Shina, 2023), de Ryūsuke Hamaguchi:

Aguardado novo trabalho do diretor Ryūsuke Hamaguchi após o sucesso Drive My Car, O Mal Não Existe é uma ode contra a ignorância e a políticas neoliberais predatórias. Escrito pelo próprio Hamaguchi, o filme se passa em um vilarejo que abriga uma natureza linda e muito valorizada por seus habitantes, sendo que o trabalho de muitos deles depende dessa natureza. Mas eis que uma empresa de Tóquio chega lá com o objetivo de construir um local para “glamping” (ou acampamento glamoroso), cujo projeto promete ameaçar todo o ecossistema do vilarejo.

Ryūsuke Hamaguchi naturalmente começa mostrando a beleza e a importância que a região tem para seus habitantes, algo que ele faz investindo em planos longos e bastante contemplativos, o que se revela essencial para entendermos o que está em jogo. Com isso estabelecido, o diretor com propriedade desce suas críticas à forma totalmente ignorante com a qual grandes corporações buscam se livrar de recursos naturais e/ou pontos históricos, pouco se importando com seu valor e costumeiramente querendo criar negócios estapafúrdios em nome de grana. Nisso, Hamaguchi concebe uma das cenas mais hilárias do ano quando os despreparados representantes da empresa apresentam seu projeto no vilarejo, subestimando todo o povo que vive ali e que se mostra conhecedor de sua história, de seu valor e não tem absolutamente nada de burro.

Além disso, o cineasta concebe uma narrativa muito bem organizada, fazendo não só rimas visuais elegantes (gosto principalmente de como o primeiro plano do filme dialoga com o último),  mas também sabendo usar a leveza dos dois primeiros atos para potencializar o peso e a surpresa carregados pelo terceiro.

Nota:



Outros posts da cobertura da Mostra:

1a parte

2a parte

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