Particularmente
falando, a leva de filmes desse post resultou em uma das maiores correrias dessa
Mostra de São Paulo até agora. Os quatro filmes foram assistidos em quatro cinemas
diferentes. No entanto, correrias como essa são o mais próximo que estou chegando
de turistar por São Paulo, considerando que não estou tendo tempo algum para passear
e conhecer a cidade. Mas é algo tem valido muito a pena, sendo que dessa vez gostei
de todos os filmes.
Enfim,
eis os comentários sobre mais quatro obras exibidas na 47ª Mostra Internacional
de Cinema de São Paulo.
Uma Vida de Ouro (Or de Vie, 2023), de Boubacar Sangaré:
“Se eu
tivesse 3 milhões de dólares já iria embora agora”, diz de maneira bem humorada
um dos trabalhadores que aparecem neste Uma Vida de Ouro, documentário de
Boubacar Sangaré. É um momento que de certa forma resume bem o filme, já que é possível
notar a desesperança de quem gostaria de mudar de vida, mas sabe que dificilmente
isso irá ocorrer. No longa, o diretor mostra o dia-a-dia de quem trabalha em uma
região de mineração na Burkina Faso, focando principalmente no jovem Rasmané.
A partir
daí acompanhamos Rasmané e seus colegas sendo explorados ao mesmo tempo que vivem
e trabalham precariamente. À noite, eles dormem quase empilhados uns em cima dos
outros, ao passo que de dia eles descem e sobem 100 metros em uma mina. Mas algo
que Boubacar Sangaré mostra é que todos ali são dominados por um sistema determinado
a mantê-los onde estão, fazendo os trabalhadores terem de seguir essa rotina de
pobreza enquanto buscam manter acesa a esperança de uma vida melhor.
Uma
Vida de Ouro acaba se tornando bastante repetitivo depois de um tempo, mas é
um documentário que acaba valendo por mostrar uma realidade que nem sempre ganha
atenção.
Nota:
Fancy Dance (2023), de Erica Tremblay:
Não satisfeito
em ter ido ver Lily Gladstone em uma atuação absolutamente memorável em Assassinos
da Lua das Flores, resolvi assistir também ao filme estrelado por ela que está
na programação da Mostra. Em Fancy Dance, Gladstone dá vida a Jax, que está
cuidando de sua sobrinha, Roki (Isabel Deroy-Olson), desde que sua irmã sumiu semanas
atrás, um caso que a polícia parece não ter interesse em resolver. Mas quando a
assistência social ameaça tirar de Jax a custódia de Roki, ela passa a se esforçar
ainda mais para descobrir o paradeiro da irmã.
A trama
de investigação em Fancy Dance não deixa de ser comum. Mas o diferencial
do longa é a atenção que a diretora Erica Tremblay faz questão de dar a cultura
indígena de seus personagens, que assim como a realizadora fazem parte da nação
Seneca-Cayuga (Tremblay inclusive assina o filme com seu nome indígena, Qdewayę:sta’).
Sendo assim, ao mesmo tempo que é envolvente acompanhar Jax tentando achar sua irmã,
é muito bacana quando a história faz pausas para mostrar rituais importantes da
cultura dos personagens. É um aspecto que também contribui muito para a riqueza
da relação entre Jax e Roki, que é repleta de respeito e afeto. E Lily
Gladstone faz um ótimo trabalho ao trazer força e determinação a uma mulher que
sabe pertencer a um mundo que negligencia seu povo o quanto pode.
Nota:
A Sobrevivência da Bondade (The Survival of Kindness, 2022), de Rolf de Heer:
Num mundo
justo, Mwajemi Hussein receberia uma tonelada de prêmios de atuação por seu trabalho
neste A Sobrevivência da Bondade. Em um filme praticamente sem diálogos,
a atriz (que nunca havia atuado antes) tem como seus principais recursos o olhar
e o carisma para fazer uma composição de personagem brilhante. A personagem à principio sem
nome – nos créditos finais ela é chamada apenas de BlackWoman – vive em uma distopia,
sendo enjaulada no meio do deserto por figuras que usam máscaras de gás e representam
um poder autoritário. Mas ao conseguir escapar, BlackWoman começa a resgatar um
mínimo de dignidade em um mundo desolado.
Autoritarismo,
intolerância, colonialismo. A alegoria que ganha vida pelas mãos do diretor Rolf
de Heer toca nessas questões com muita clareza, conseguindo ainda envolver o espectador
mesmo investindo em um ritmo mais cadenciado na narrativa, algo que serve também
para que ele mostre com calma o universo cheio de cenários desesperadores. Mas ainda
que lide com temas pesados, A Sobrevivência da Bondade se mostra capaz de
causar o riso. E aqui cito mais uma vez o trabalho de Mwajemi Hussein, que faz de
BlackWoman uma personagem capaz de nos fazer sorrir em meio ao caos, seja com meras
reverências a manequins, seja com interjeições de impaciência. Mas acho que o que
define mesmo a atuação maravilhosa da atriz é seu olhar generoso, e que se mantém assim
ao longo de praticamente todo o filme e faz o espectador ter um carinho quase imediato
por ela.
Um ótimo
filme e uma performance central que certamente é uma das melhores do ano.
Nota:
O Mal Não Existe (Aku Wa Sonzai Shina, 2023), de Ryūsuke Hamaguchi:
Aguardado
novo trabalho do diretor Ryūsuke Hamaguchi após o sucesso Drive My Car,
O Mal Não Existe é uma ode contra a ignorância e a políticas neoliberais predatórias.
Escrito pelo próprio Hamaguchi, o filme se passa em um vilarejo que abriga uma natureza
linda e muito valorizada por seus habitantes, sendo que o trabalho de muitos deles
depende dessa natureza. Mas eis que uma empresa de Tóquio chega lá com o objetivo
de construir um local para “glamping” (ou acampamento glamoroso), cujo projeto promete
ameaçar todo o ecossistema do vilarejo.
Ryūsuke
Hamaguchi naturalmente começa mostrando a beleza e a importância que a região tem
para seus habitantes, algo que ele faz investindo em planos longos e bastante contemplativos,
o que se revela essencial para entendermos o que está em jogo. Com isso estabelecido,
o diretor com propriedade desce suas críticas à forma totalmente ignorante com
a qual grandes corporações buscam se livrar de recursos naturais e/ou pontos históricos,
pouco se importando com seu valor e costumeiramente querendo criar negócios estapafúrdios
em nome de grana. Nisso, Hamaguchi concebe uma das cenas mais hilárias do ano quando
os despreparados representantes da empresa apresentam seu projeto no vilarejo, subestimando
todo o povo que vive ali e que se mostra conhecedor de sua história, de seu valor
e não tem absolutamente nada de burro.
Além
disso, o cineasta concebe uma narrativa muito bem organizada, fazendo não só rimas
visuais elegantes (gosto principalmente de como o primeiro plano do filme dialoga
com o último), mas também sabendo usar a
leveza dos dois primeiros atos para potencializar o peso e a surpresa carregados
pelo terceiro.
Nota:
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