terça-feira, 31 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - Última Parte


E chegamos ao nosso último post da cobertura dessa 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Nos oito dias que fiquei na cidade, assisti a 30 filmes e consegui produzir conteúdo sobre todos. No processo, creio ter conseguido bater de frente com inseguranças que costumo ter em relação tanto ao meu trabalho quanto a mim mesmo, o que faz eu pensar que essa cobertura foi uma das experiências mais enriquecedoras que já tive.

Espero que tenham curtido os comentários tanto quanto eu curti assistir aos filmes e escrever sobre eles. Foi um trabalho cansativo, mas certamente prazeroso e que espero repetir mais vezes no futuro próximo.

Bom, vamos aos últimos quatro filmes que conferi.

Uma Revolução em Quadros (A Revolution on Canvas, 2023), de Sara Nodjoumi e Till Schauder:

Documentário produzido pela HBO, Uma Revolução em Quadros foca no pintor iraniano Nicky Nodjoumi, que em 1980 se exilou nos Estados Unidos durante a Revolução Islâmica por conta de ameaças e acusações de traição, já que ele era crítico do regime do Irã na época. A fuga ocorreu antes de uma exibição que ele iria fazer, de forma que ele deixou para trás todas as obras que seriam expostas. O documentário, codirigido pela filha de Nicky, Sara Nodjoumi, investiga o paradeiro dessas obras e os esforços do artista e de sua família para recuperá-los, ao mesmo tempo em que conhecemos o artista e vemos o quanto seu ativismo afetou sua vida pessoal.

Seja pela história de Nicky Nodjoumi e sua família ou pela investigação sobre suas obras, Uma Revolução em Quadros se revela muito rico. Estabelecendo bem o contexto do exílio do artista e fazendo um retrato eficaz do autoritarismo que domina seu país, o filme é envolvente em sua investigação, que se revela nada simples e bastante arriscada, a ponto de Sara Nodjoumi e Till Schauder (marido dela e codiretor do filme) terem que censurar até os nomes das pessoas que os ajudam. Além disso, o longa fala com propriedade sobre sacrifícios que são feitos em nome de algo maior, o que faz a história de Nicky e a relação dele com sua família render momentos muito tocantes.

Nota:




Quem Fizer Ganha (Next Goal Wins, 2023), de Taika Waititi:

O estilo non sense de Taika Waititi se mistura com todos os clichê possíveis neste Quem Fizer Ganha. No longa, que se passa em 2011, acompanhamos a seleção de futebol da Samoa Americana, na época a última colocada no ranking de seleções da FIFA e conhecida por uma derrota histórica de 31 a 0 para a Austrália. É então que o técnico Thomas Rongen (Michael Fassbender) é contratado para tentar fazer o time dar a volta por cima, o que na verdade significa apenas marcar um gol, pouco importando os resultados.

É natural sentir simpatia pela história que é contada, já que se trata do clássico “Davi contra Golias” em que torcemos para figuras pouco afortunadas terem sucesso. Mas mesmo assim, é preciso reconhecer que Taika Waititi faz um filme formuláico, previsível e por vezes maniqueísta demais. Somando isso ao non sense totalmente sem controle do diretor, Quem Fizer Ganha acaba se tornando uma experiência mais irritante do que propriamente engraçada, sendo que Waititi ainda retrata o povo da Samoa Americana como figuras estereotipadas e engraçadinhas que nunca soam realmente humanas.

Nota:


O Livro das Soluções (Le Livre des solutions, 2023), de Michel Gondry:

Acho que O Livro das Soluções foi uma das minhas grandes frustrações entre os longas que assisti na Mostra. Gosto do estilo e do senso de humor de Michel Gondry, que se fazem presentes neste novo trabalho, mas acabam auxiliando uma narrativa sem foco e protagonizada por um sujeito que beira o insuportável.

Escrito pelo próprio Gondry, O Livro das Soluções reflete a relação que o diretor teve com produtores em alguns de seus projetos. Aqui, Marc (Pierre Niney) é um jovem cineasta em meio a realização de seu mais novo filme. Mas quando os produtores detestam uma versão não-finalizada da obra e resolvem tirá-la de suas mãos, o diretor decide pegar todo o material filmado e finalizá-lo na casa de sua tia Denise (Françoise Lebrun), tendo a ajuda da montadora Charlotte (Blanche Gardin) e de sua assistente Sylvia (Frankie Wallach).

Seria o filme uma crítica a como estúdios tratam a liberdade criativa de seus diretores? Estaria Michel Gondry querendo compartilhar com as pessoas (principalmente artistas em potencial) o que sabe sobre o processo de realização de uma obra de arte? Ou ele quer tratar das ansiedades resultantes de um processo criativo? No fim, Michel Gondry parece querer falar sobre muitas coisas ao longo de O Livro das Soluções, mas acaba não falando sobre nada.

Muito se deve também a aleatoriedade que toma conta da cabeça do protagonista, que muitas vezes não sabe o que quer fazer primeiro. E isso é apenas uma das coisas que tornam Marc um teste de paciência para o espectador, já que sua bipolaridade e egocentrismo se mostram irritantes e ele chega a ser até abusivo em determinados momentos com quem quer apenas ajudá-lo.

Nota:


Maestro (2023), de Bradley Cooper:

Aguardada cinebiografia do maestro e músico Leonard Bernstein dirigida por Bradley Cooper, Maestro segue a vida de Bernstein (vivido pelo próprio Cooper) ao longo de 50 anos, mostrando o sucesso dele desde cedo como condutor de grandes orquestras, sua sexualidade e seu casamento com Felicia Montealegre (Carey Mulligan).

Como ator, Bradley Cooper faz um bom trabalho encarnando a segurança de Leonard Bernstein como artista, algo que só aumenta e se torna mais sutil com o passar dos anos, sendo que o ator ainda mantém grande expressividade mesmo quando por baixo de toda a excelente maquiagem que utiliza quando o personagem fica mais velho. Já a ótima Carey Mulligan traz força e resiliência a Felicia, uma mulher que se recusa a viver na sombra do marido mesmo quando isso parece inevitável. E por mais conturbado que seja o casamento dos personagens, seus intérpretes conseguem mostrar bem o afeto entre eles.

No entanto, enquanto o roteiro escrito por Cooper e Josh Singer faz um belo retrato da relação entre Bernstein e Montealegre, outras coisas parecem ser jogadas na tela apenas para que o filme possa dizer que as incluiu, como o uso de drogas por parte do protagonista e os namoros dele com outros homens (em especial Tom Cothran), que mais parecem devaneios do que propriamente relacionamentos. Este último quesito é até curioso considerando que o filme trata a sexualidade de Leonard Bernstein abertamente, de forma que talvez tenha faltado um pouco de coragem a Cooper e sua equipe para se aprofundar mais nesse aspecto.

Já na direção, há sacadas interessantes de Bradley Cooper. A lógica visual do filme, por exemplo, é primorosa, iniciando com uma razão de aspecto 1.33:1 em preto e branco, para então adicionar cores na segunda fase da vida do protagonista e aumentando a razão de aspecto para o habitual 1.85:1 apenas quando chega na fase final, o que sinaliza como uma passagem se soma a outra. Além disso, Cooper é hábil ao usar uma maior profundidade de campo para retratar o modo que Felicia fica, por vezes, relegada na vida do protagonista, ao passo que planos mais longos trazem uma maior naturalidade a determinadas cenas. Porém, há vários outros momentos em que Cooper parece apenas querer se exibir, usando travellings que viajam pelos cenários e um extenso número de raccords (transições de cena que mantêm a continuidade entre um plano e outro), recursos que acabam chamando atenção demais para seu diretor.

Maestro no fim se equilibra entre altos e baixos, conseguindo até ser eficaz como filme, ainda que não tão brilhante como a figura que retrata na tela.

Nota:



Outros posts da cobertura:

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - 6ª Parte


Estamos na reta final da nossa cobertura da Mostra de São Paulo. Já começo a sentir falta do evento. Eis aqui os comentários sobre mais quatro filmes que assisti, incluindo simplesmente o grande vencedor do Festival de Cannes deste ano e um documentário em 3D do lendário Wim Wenders.

Anatomia de Uma Queda (Anatomie d’une chute, 2023), de Justine Triet:

Se Anatomia de Uma Queda fosse um filme mais preocupado com a solução de seus conflitos, acho que ele não teria a força que tem. O que faz o longa brilhar é o caminho que a diretora Justine Triet monta até a linha de chegada, lembrando uma velha frase de Roger Ebert, que dizia que “Não importa sobre o que é o filme, mas sim como ele é”.

Anatomia de Uma Queda basicamente é um drama de tribunal. Depois que seu marido Samuel (Samuel Maleski) é encontrado morto do lado de fora de casa, a escritora Sandra (Sandra Hüller) é indiciada como a principal suspeita, o que inicia uma luta nos tribunais para esclarecer o que exatamente ocorreu: assassinato ou suicídio. Isso acaba envolvendo até as lembranças do filho deficiente visual do casal, Daniel (Milo Machado-Graner), que encontrou o corpo do pai.

Logo na primeira cena do filme, Justine Triet faz algo que já diz muito sobre o que veremos. Quando Sandra é entrevistada por uma jornalista e um tópico sobre verdade e ficção surge na conversa, a diretora deixa a cena desfocada por um breve segundo, logo quando a palavra “verdade” é proferida. Coincidência ou não, ao longo do filme a verdade sobre tudo o que acontece é o que menos importa, já que nada indica um caminho claro. E é isso que torna a narrativa de Justine Triet tão admirável, nos mantendo envolvidos do início ao fim por nos fazer lidar mais com questionamentos do que propriamente com respostas, nos deixando sempre com uma pulga atrás da orelha em relação a tudo e todos e permitindo que o espectador tire suas próprias conclusões.

No topo disso tudo temos uma Sandra Hüller em atuação digna de prêmios, tornando a protagonista uma figura multidimensional e simplesmente difícil de julgar, já que ao mesmo tempo em que ela é capaz de ser manipuladora e fria, ela também soa sincera em tudo o que diz. Já o jovem Milo Machado-Graner não fica muito atrás e surpreende ao fazer do personagem uma figura pouco confiável não tanto por sua deficiência, mas sim por conta de sua fragilidade emocional.

A Palma de Ouro do Festival de Cannes definitivamente ficou em boas mãos.

Nota:


Atrás das Montanhas (Oura el Jebel, 2023), de Mohamed Ben Attia:

Após passar quatro anos na prisão por ter tido um ataque de fúria em uma universidade, Rafik (Majd Mastoura) tem o objetivo obsessivo de mostrar uma descoberta especial a sua família, em especial seu filho Yassine (Walid Bouchhioua). Começa assim uma jornada em que crenças são colocadas à prova.

Atrás das Montanhas tem um início muito promissor, não demorando para dar início a discussões sobre crenças e religião a partir do que Rafik deseja mostrar ao filho, algo que fica ainda mais evidente quando um pastor de ovelhas (vivido por Samer Bisharat) passa a segui-los a troco de nada. Mas é uma pena que em determinado momento o roteiro do diretor Mohamed Ben Attia transforme a história em um thriller clichê de invasão a domicílio, algo que nem condiz muito com os personagens e torna a narrativa desinteressante, diminuindo a força das discussões que ele propõe.

Nota:


A Besta (Lá Bête, 2023), de Bertrand Bonello:

Levemente inspirado por “A Fera da Selva”, novela de Henry James, A Besta mostra uma realidade em 2044 que foi dominada por uma inteligência artificial, a ponto de Gabrielle (Léa Seydoux) concluir que o único jeito de se encaixar na sociedade é se livrando de suas memórias e sentimentos, o que inclui suas vidas passadas. Acompanhamos, então, a jornada da personagem pelos anos de 1910, 2014 e 2044, e o relacionamento dela com Louis (George MacKay), que atravessa todas essas épocas.

Em meio a discussões sobre natureza, misoginia e tecnologia, este novo trabalho de Bertrand Bonello se revela bastante atual, tratando essencialmente sobre como a humanidade desperdiça seu próprio potencial. No entanto, a narrativa conduzida por Bonello nem sempre é interessante. Se por um lado os acontecimentos de 1910 funcionam dramaticamente, os de 2014 já se revelam um tanto bobos, de forma que o ritmo do filme acaba sendo um pouco prejudicado pela própria estrutura da história, que intercala as linhas temporais. No fim, A Besta não deixa de ser eficaz, mas não é uma obra tão memorável de seu realizador.

Nota:



Anselm: O Barulho do Tempo (Anselm: Das Rauschen der Zeit, 2023), de Wim Wenders:

Já tem um bom tempo que desisti de assistir a filmes em 3D, reservando isso apenas para quando não há alternativa. Desde que a tecnologia se popularizou, são raríssimos os casos de obras que a utilizam como parte da narrativa, já que os grandes estúdios continuam fazendo seus filmes normalmente, convertendo-os para um 3D inexistente e que serve apenas para inflar as bilheterias. Mas que bom que ainda temos artistas do calibre de Wim Wenders para mostrar do que a tecnologia é capaz.

Depois de fazer um documentário em 3D sobre a bailarina Pina Bausch, o diretor agora faz o mesmo com o pintor e escultor Anselm Kiefer. Misturando documentário e ficção, Wenders cria uma experiência poética e imersiva nas obras e na história do artista, mostrando como ao longo dos anos ele se esforçou para fazer uma arte não só muito evocativa, mas também provocativa e que mantivesse acesas discussões e acontecimentos que a maioria talvez não goste muito de pensar sobre. Além disso, o diretor cria um filme esteticamente belo, sabendo aproveitar muito bem o 3D para contemplar as obras de Kiefer.

Nota:




Outros posts da cobertura:

sábado, 28 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - 5ª Parte


Maratonar filmes é divertido, mas maratonar filmes durante um dos principais festivais do país,  correndo de um cinema a outro, é incomparável.

E vamos lá para os comentários sobre mais cinco filmes conferidos na Mostra de São Paulo.

Devagar (Tu man nieko neprimeni, 2023), de Marija Kavtaradzé:

Candidato da Lituânia ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Devagar apresenta a dançarina Elena (Greta Grineviĉiūté) e o intérprete de linguagem de sinais Dovydas (Kęstutis Cicénas). Após se conhecerem em um trabalho, os dois iniciam um romance. No entanto, Dovydas desde o princípio deixa claro ser assexual, algo que com o tempo vira um entrave para o casal.

Acompanhamos, então, um romance que se destaca pela honestidade. Ainda que possamos prever os tipos de conflito que irão surgir em algum momento entre os personagens, a conexão do casal é forte desde o início, muito por eles se abrirem totalmente um para o outro, em um relacionamento sensível e tratado com delicadeza pela diretora Marija Kavtaradzé. E as atuações de Greta Grineviĉiūté e Kęstutis Cicénas merecem vastos elogios, já que a dupla não só tem carisma e uma química em cena invejável, mas também faz de Elena e Dovydas figuras incrivelmente humanas.

Nota:


Todos Amam Jeanne (Tout le monde aime Jeanne, 2023), de Céline Devaux:

Jeanne (Blanche Gardin) é uma mulher muito admirada, mas no momento se sente no fundo do poço quando vê seu projeto de sustentabilidade ir, literalmente, por água abaixo. Humilhada e falida, ela vai a Lisboa com a ideia de vender o apartamento deixado por sua falecida mãe, encontrando no caminho um antigo colega, Jean (Laurent Lafitte), que passa a ser uma presença frequente em seu dia-a-dia.

Todos Amam Jeanne é um tanto formulário e, por isso, acaba sendo previsível em vários pontos de sua trama e no arco de sua protagonista. Mas é um filme no qual a diretora Céline Devaux mostra presar muito pelo bom humor, concebendo uma narrativa leve e que diverte ora com os personagens, ora com certas sacadas do roteiro. As inserções animadas que representam os pensamentos de Jeanne, por exemplo, arrancam boas risadas, mesmo que à vezes surjam exageradamente. Já Blanche Gardin carrega o filme com segurança interpretando a protagonista, mesmo que seja um pouco ofuscada por Laurent Lafitte e o jeito totalmente cara de pau de seu Jean.

Nota:


Pedágio (2023), de Carolina Markowics:

Tem sido comum os jornais trazerem notícias de pessoas homoafetivas que tiram a própria vida após se submeterem a algum processo de “cura”, geralmente propagado por pastores cujo maior interesse está no dinheiro que recebem e não no bem-estar do próximo. Pedágio parte exatamente dessa ideia de “cura” para desenvolver a história de uma mãe e seu filho.

No filme, a diretora Carolina Markowicz nos apresenta a Suellen (Maeve Jinkings), que trabalha em um pedágio e é mãe de Tiquinho (Kauan Alvarenga), rapaz homossexual e que não tem vergonha de sua natureza. Mas a mãe infelizmente tem, e resolve enviá-lo para o tratamento de um pastor estrangeiro que está sendo promovido por uma igreja. Mas para poder pagar por isso, ela entra em negócios ilícitos com o namorado (Thomas Aquino).

Uma das coisas bacanas de Pedágio é que, ao mesmo tempo em que ridiculariza tudo o que envolve o tal tratamento de cura, Carolina Markowicz faz questão de cutucar a hipocrisia daqueles que geralmente vendem essa ideia como algo válido, indivíduos que quando analisados de perto não têm nada de santos e puros, mas ainda assim adoram condenar o outro apenas por sua sexualidade. Além disso, a relação entre mãe e filho no filme é retratada delicadamente, já que tratam-se de pessoas que claramente se amam e se importam uma com a outra, apesar de a mãe não aceitar a natureza do filho. E Maeve Jinkings e Kauan Alvarenga dão vida a essa dinâmica com a sensibilidade necessária.

Nota:


Ervas Secas (Kuru Otlar Üstüne, 2023), de Nuri Bilge Ceylan:

Logo após as mais três horas de duração deste Ervas Secas, pairou em minha cabeça a dúvida quanto ao número de páginas que o roteiro do filme teria. Não por conta da duração, mas sim por ele contar com diálogos, diálogos, diálogos e mais diálogos (respondendo a dúvida, aparentemente o roteiro tinha mais de 500 páginas). Mas apesar de parecer, isso que falei está bem longe de ser uma crítica, já que o diretor Nuri Bilge Ceylan faz dos diálogos um dos pontos fortes do filme.

A história mostra o professor Samet (Deniz Celiloğlu), que mora junto com seu colega Kenan (Musab Ekici) e dá aula em uma escola em Anatolia, tendo como objetivo se transferir de volta para Istambul. Mas as coisas passam a não dar muito certo quando duas alunas acusam os sujeitos de terem abusado delas. Ao mesmo tempo, Samet e Kenan conhecem Nuray (Merve Dizdar), professora que sobreviveu a um ataque terrorista e pela qual ambos passam a se interessar.

Pela base da trama, Ervas Secas parece que será um filme que colocará seus personagens rumo a algum julgamento, mesmo que seja um julgamento do próprio público. Mas a verdade é que Nuri Bilge Ceylan usa isso mais como ponto de partida para o longa, que tem interesse maior em trazer Samet, Kenan e Nuray discutindo política, filosofia, suas visões de mundo, seus desejos e até sua própria existência, com os dramas pessoais dos personagens funcionando para mostrar como tudo isso se molda e pode mudar a partir de nossas vivências. E talvez Ervas Secas pudesse ser uma experiência maçante (afinal, grande parte do filme é composta por longos planos de personagens conversando), mas Nuri Bilge Ceylan consegue dar dinamismo a narrativa, ao passo que os diálogos se revelam brilhantes e universais.

Nota:


Tiger Stripes (2023), de Amanda Nell Eu:

Candidato da Malásia ao Oscar de Melhor Filme Internacional, o longa de estreia de Amanda Nell Eu apresenta a jovem Zaffan (Zafreen Zairizal), que está começando a passar pelas mudanças causadas pela puberdade. Mas aos poucos as mudanças se revelam diferentes, chegando a níveis sobrenaturais.

Sutileza é algo que não faz parte da narrativa de Tiger Stripes, e ao longo da trama o filme usa as transformações de Zaffan como uma alegoria referente a forma como ela se sente na realidade conservadora que vive. Uma realidade na qual até mesmo fazer vídeos para as redes sociais soa como desafio a autoridades (ao menos quando meninas fazem). Mas apesar de lidar com uma temática séria e montar uma narrativa que flerta muito com o terror, Amanda Nell Eu faz um filme caloroso e que diverte, principalmente quando resolve abraçar um lado mais trash (como ocorre no terceiro ato), ainda que no fim isso tire qualquer peso que a obra poderia ter.

Nota:


Outros posts da cobertura:

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - 4ª Parte

Hoje infelizmente não tenho uma grande introdução em mãos ou uma brincadeira para fazer. Sinais de que minha criatividade tem limite. Mas vejam pelo lado bom: podemos ir direto comentar mais cinco filmes assistidos nessa Mostra de São Paulo.

Sob o Silêncio das Água (He bian de cuo wu, 2023), de Wei Shujun:

Em 1995, o policial Ma Zhe (Zhu Yilong) se depara com uma série de assassinatos pela cidade. Apesar de as suspeitas caírem em cima do filho adotivo de uma das vítimas, Ma Zhe começa uma investigação que o faz questionar até sua noção de realidade, ao mesmo tempo que ele lida com a gravidez de sua esposa.

Sob o Silêncio das Águas não sai muito do lugar-comum, percorrendo caminhos que outros thrillers policiais já percorreram de maneira melhor, além de não ser tão misterioso quanto gostaria. Há bons momentos, como a cena em que a polícia testa várias armas brancas para descobrir qual delas pode ter sido responsável pelos crimes, mas são raros e não são o bastante pra envolver o espectador. Além disso, o protagonista se revela muito desinteressante, interpretado por Zhu Yilong de maneira inexpressiva.

Nota:


Até Que a Música Pare (2023), de Cristiane Oliveira:

Se há algo que fica evidente na filmografia de Cristiane Oliveira como diretora é o carinho que ela tem por seus personagens. E isso não é diferente neste seu novo longa, Até Que a Música Pare, cuja história se passa na Serra Gaúcha e boa parte é falada no idioma italian. No filme somos apresentados a Chiara (Cibele Tedesco), uma senhora que se vê em uma rotina solitária. Ela então decide acompanhar o marido, Alfredo (Hugo Lorensatti), nas entregas que ele realiza em mercados, sendo que eles ainda estão lidando com a perda de um de seus filhos.

Ao longo do filme Cristiane Oliveira busca tratar de temas muito humanos e até mesmo atuais, mostrando como parte do luto vivido pelo casal vem pelo afastamento do filho causado pela polarização que a política trouxe a muitas famílias. Mas esse tema em específico surge no filme superficialmente, especialmente se comparado com outros dois que sustentam bem a narrativa: o uso da religião como um conforto para quem deseja manter uma conexão com um ente querido após a morte, e a sensação de abandono que atinge tantas pessoas idosas, que assim convivem com um certo descaso dos filhos.

São temas desenvolvidos com muita sensibilidade e até bom humor por Cristiane Oliveira, sendo que ela ainda conta com uma atuação cheia de ternura de Cibele Tedesco.

Nota:


Mambar Pierrette (2023), de Rosine Mfetgo Mbakam:

Mambar Pierrete é um retrato de perseverança. Focando na personagem-título, uma costureira na cidade de Douala, o longa mostra o cotidiano dela e como ela encara diversos infortúnios, buscando dribla-los para se manter e poder cuidar de seus filhos e de sua mãe.

Mais conhecida por seu trabalho em documentários, a diretora Rosine Mfetgo Mbakam traz um pouco dessa linguagem para o que constrói aqui, acompanhando de maneira bastante próxima sua protagonista e apostando em uma dinâmica bastante natural entre ela e outros personagens, o que rende um tom realista muito apropriado. Aliás, logo de cara Mambar já conquista a simpatia do público, com o filme trazendo cenas em que ela cuida com paciência de sua mãe e sendo afetuosa com um de seus filhos, o que faz nós torcermos por ela frente a todo e qualquer obstáculo que apareça em seu caminho, seja tal obstáculo algo simples ou mais complicado.

Nota:


Não Espere Muito do Fim do Mundo (Nu aştepta prea mult de la sfârşitul lumii, 2023), de Radu Jude:

Novo trabalho de Radu Jude e candidato da Romênia para tentar uma das vagas entre os indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional, Não Espere Muito do Fim do Mundo nos apresenta a assistente de produção Angela (Ilinca Manolache) enquanto ela dirige de ponto em ponto por Bucareste. Sua tarefa é entrevistar pessoas para um vídeo de segurança no trabalho, projeto ordenado por uma grande empresa. Pontualmente, ainda vemos inserções de cenas do filme Angela Vai em Frente (de 1981), que também traz uma mulher dirigindo a trabalho pela cidade.

Radu Jude então faz um retrato cheio de ironia e humor ácido de uma sociedade que, mesmo tendo evoluído nos últimos 40 anos, ainda parece manter muitas pessoas à beira do colapso profissionalmente. Ao longo filme vemos Angela viver uma jornada de trabalho absurda por horas e horas, e creio que as pausas que a personagem faz para encarnar seu alter ego satírico Bobita (uma figura bizarra, misógina e, por ser uma sátira, hilária) sirvam como uma manifestação da raiva que ela acumula. Raiva esta que no fim se direciona a líderes e corporações poderosas, que mantém as pessoas sempre sobrecarregadas de alguma forma e, quando algo dá errado, culpam as próprias pessoas pelo ocorrido (como é ilustrado na longa e excelente cena em que o vídeo de segurança é gravado).

Aqui e ali Não Espere Muito do Fim do Mundo soa um tanto autoindulgente, mas de modo geral Radu Jude faz um dos filmes mais estranhamente engraçados do ano.

Nota:


Paraíso em Chamas (Paradiset brinner, 2023), de Mika Gustafson:

Primeiro longa de ficção da diretora sueca Mika Gustafson, Paraíso em Chamas conta a história das jovens irmãs Laura, Mira e Steffi (vividas respectivamente por Bianca Delbravo, Dilvin Asaad e Safira Mossberg), que há um bom tempo se encontram abandonadas pela mãe e vivem sozinhas cuidando umas das outras. Laura, por ser a mais velha, acaba servindo como a matriarca das irmãs, mas a preocupação surge quando a assistência social entra em contato querendo falar com a mãe delas, o que faz a garota tentar encontrar alguém que se passe por esse papel e impeça o trio de ser separado.

Paraíso em Chamas coloca adolescentes precisando assumir papéis de adultas, mas sem ter qualquer preparo para exercer tal papel, uma ideia que não é nova, mas que aqui ainda funciona bem. A rotina das irmãs, por exemplo, é uma verdadeira bagunça, e Gustafson mescla isso com peripécias ilegais que as garotas fazem e que parecem gerar um divertimento que elas precisam a fim de não pensar muito em como vivem.

O filme também se beneficia da dinâmica entre as três atrizes, com Bianca Delbravo merecendo destaque especial por fazer de Laura uma figura mais impaciente e raivosa, talvez por estar em um papel que não gostaria, o que não a impede de se divertir com as irmãs diante da vida sem muita responsabilidade que elas têm. É uma pena que Paraíso em Chamas desenvolva alguns pontos da trama de maneira previsível (como a relação entre Laura e Hanna, interpretada por Ida Engvoll) e não se resolva tão bem, mas ainda assim é um drama eficaz.

Nota:


Outros posts da cobertura:

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - 3ª Parte

Particularmente falando, a leva de filmes desse post resultou em uma das maiores correrias dessa Mostra de São Paulo até agora. Os quatro filmes foram assistidos em quatro cinemas diferentes. No entanto, correrias como essa são o mais próximo que estou chegando de turistar por São Paulo, considerando que não estou tendo tempo algum para passear e conhecer a cidade. Mas é algo tem valido muito a pena, sendo que dessa vez gostei de todos os filmes.

Enfim, eis os comentários sobre mais quatro obras exibidas na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Uma Vida de Ouro (Or de Vie, 2023), de Boubacar Sangaré:

“Se eu tivesse 3 milhões de dólares já iria embora agora”, diz de maneira bem humorada um dos trabalhadores que aparecem neste Uma Vida de Ouro, documentário de Boubacar Sangaré. É um momento que de certa forma resume bem o filme, já que é possível notar a desesperança de quem gostaria de mudar de vida, mas sabe que dificilmente isso irá ocorrer. No longa, o diretor mostra o dia-a-dia de quem trabalha em uma região de mineração na Burkina Faso, focando principalmente no jovem Rasmané.

A partir daí acompanhamos Rasmané e seus colegas sendo explorados ao mesmo tempo que vivem e trabalham precariamente. À noite, eles dormem quase empilhados uns em cima dos outros, ao passo que de dia eles descem e sobem 100 metros em uma mina. Mas algo que Boubacar Sangaré mostra é que todos ali são dominados por um sistema determinado a mantê-los onde estão, fazendo os trabalhadores terem de seguir essa rotina de pobreza enquanto buscam manter acesa a esperança de uma vida melhor.

Uma Vida de Ouro acaba se tornando bastante repetitivo depois de um tempo, mas é um documentário que acaba valendo por mostrar uma realidade que nem sempre ganha atenção.

Nota:


Fancy Dance (2023), de Erica Tremblay:

Não satisfeito em ter ido ver Lily Gladstone em uma atuação absolutamente memorável em Assassinos da Lua das Flores, resolvi assistir também ao filme estrelado por ela que está na programação da Mostra. Em Fancy Dance, Gladstone dá vida a Jax, que está cuidando de sua sobrinha, Roki (Isabel Deroy-Olson), desde que sua irmã sumiu semanas atrás, um caso que a polícia parece não ter interesse em resolver. Mas quando a assistência social ameaça tirar de Jax a custódia de Roki, ela passa a se esforçar ainda mais para descobrir o paradeiro da irmã.

A trama de investigação em Fancy Dance não deixa de ser comum. Mas o diferencial do longa é a atenção que a diretora Erica Tremblay faz questão de dar a cultura indígena de seus personagens, que assim como a realizadora fazem parte da nação Seneca-Cayuga (Tremblay inclusive assina o filme com seu nome indígena, Qdewayę:sta’). Sendo assim, ao mesmo tempo que é envolvente acompanhar Jax tentando achar sua irmã, é muito bacana quando a história faz pausas para mostrar rituais importantes da cultura dos personagens. É um aspecto que também contribui muito para a riqueza da relação entre Jax e Roki, que é repleta de respeito e afeto. E Lily Gladstone faz um ótimo trabalho ao trazer força e determinação a uma mulher que sabe pertencer a um mundo que negligencia seu povo o quanto pode.

Nota:


A Sobrevivência da Bondade (The Survival of Kindness, 2022), de Rolf de Heer:

Num mundo justo, Mwajemi Hussein receberia uma tonelada de prêmios de atuação por seu trabalho neste A Sobrevivência da Bondade. Em um filme praticamente sem diálogos, a atriz (que nunca havia atuado antes) tem como seus principais recursos o olhar e o carisma para fazer uma composição de personagem brilhante. A personagem à principio sem nome – nos créditos finais ela é chamada apenas de BlackWoman – vive em uma distopia, sendo enjaulada no meio do deserto por figuras que usam máscaras de gás e representam um poder autoritário. Mas ao conseguir escapar, BlackWoman começa a resgatar um mínimo de dignidade em um mundo desolado.

Autoritarismo, intolerância, colonialismo. A alegoria que ganha vida pelas mãos do diretor Rolf de Heer toca nessas questões com muita clareza, conseguindo ainda envolver o espectador mesmo investindo em um ritmo mais cadenciado na narrativa, algo que serve também para que ele mostre com calma o universo cheio de cenários desesperadores. Mas ainda que lide com temas pesados, A Sobrevivência da Bondade se mostra capaz de causar o riso. E aqui cito mais uma vez o trabalho de Mwajemi Hussein, que faz de BlackWoman uma personagem capaz de nos fazer sorrir em meio ao caos, seja com meras reverências a manequins, seja com interjeições de impaciência. Mas acho que o que define mesmo a atuação maravilhosa da atriz é seu olhar generoso, e que se mantém assim ao longo de praticamente todo o filme e faz o espectador ter um carinho quase imediato por ela.

Um ótimo filme e uma performance central que certamente é uma das melhores do ano.

Nota:


O Mal Não Existe (Aku Wa Sonzai Shina, 2023), de Ryūsuke Hamaguchi:

Aguardado novo trabalho do diretor Ryūsuke Hamaguchi após o sucesso Drive My Car, O Mal Não Existe é uma ode contra a ignorância e a políticas neoliberais predatórias. Escrito pelo próprio Hamaguchi, o filme se passa em um vilarejo que abriga uma natureza linda e muito valorizada por seus habitantes, sendo que o trabalho de muitos deles depende dessa natureza. Mas eis que uma empresa de Tóquio chega lá com o objetivo de construir um local para “glamping” (ou acampamento glamoroso), cujo projeto promete ameaçar todo o ecossistema do vilarejo.

Ryūsuke Hamaguchi naturalmente começa mostrando a beleza e a importância que a região tem para seus habitantes, algo que ele faz investindo em planos longos e bastante contemplativos, o que se revela essencial para entendermos o que está em jogo. Com isso estabelecido, o diretor com propriedade desce suas críticas à forma totalmente ignorante com a qual grandes corporações buscam se livrar de recursos naturais e/ou pontos históricos, pouco se importando com seu valor e costumeiramente querendo criar negócios estapafúrdios em nome de grana. Nisso, Hamaguchi concebe uma das cenas mais hilárias do ano quando os despreparados representantes da empresa apresentam seu projeto no vilarejo, subestimando todo o povo que vive ali e que se mostra conhecedor de sua história, de seu valor e não tem absolutamente nada de burro.

Além disso, o cineasta concebe uma narrativa muito bem organizada, fazendo não só rimas visuais elegantes (gosto principalmente de como o primeiro plano do filme dialoga com o último),  mas também sabendo usar a leveza dos dois primeiros atos para potencializar o peso e a surpresa carregados pelo terceiro.

Nota:



Outros posts da cobertura da Mostra:

1a parte

2a parte

domingo, 22 de outubro de 2023

47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo - 2ª Parte

A Mostra recém começou e o crítico que vos fala... já conseguiu ir e voltar das sessões de metrô (uma vitória para o bolso) e ainda soube ajudar alguém que pediu direções na rua. Mais uns dias e serei um nativo de São Paulo.

Mas brincadeiras à parte, hoje temos mais cinco filmes para comentar.

Sonhando e Morrendo (Dreaming & Dying, 2023), de Nelson Yeo:

Focado no reencontro entre três amigos (interpretados por Peter Yu, Doreen Toh e Kelvin Ho) após muitos anos sem se verem, o filme do diretor Nelson Yeo procura ser um conto sobre desejos reprimidos. Quando a reunião dos amigos ocorre, tais sentimentos vêm a tona e dão início a um triângulo amoroso com toques fantásticos.

Ao longo de Sonhando e Morrendo, Nelson Yeo intercala os momentos do trio principal com cenas que recriam passagens de um livro, obra que reflete os sentimentos dos personagens. Inicialmente ambos os pontos da narrativa até se complementam, mas não demora muito para que se misturem, fazendo a história como um todo ficar redundante. Além disso, em determinados momentos o longa procura fazer comentários sobre o meio ambiente e refletir sobre a finitude da vida, mas são coisas que não saem muito do óbvio e superficial.

Nota:


Afire (Rotter Himmel), de Christian Petzold:

O jovem escritor Leon (Thomas Schubert) vai com seu amigo Felix (Langston Uibel) até uma casa de praia no Mar Báltico, onde espera se concentrar melhor em seu novo romance. Chegando lá a dupla se depara com Nadja (Paula Beer), cuja presença acaba se revelando distrativa principalmente para Leon, que passa então a se esforçar muito para não dar voz a seus sentimentos, enquanto que incêndios florestais atingem a região e limitam os arredores dos personagens.

Coincidência ou não, tematicamente Afire lembra o primeiro filme deste post, com o diretor alemão Christian Petzold construindo uma narrativa sobre desejos reprimidos e de como eles são capazes de nos atrasar. Mas ao contrário do que ocorre em Sonhando e Morrendo, Petzold conta uma história muito mais sólida, desenvolvendo seus temas com propriedade, com os incêndios servindo como um reflexo interessante das limitações que o protagonista impõe a si próprio. Os personagens de Afire, aliás, se revelam muito ricos e contam com intérpretes que fazem jus a essa riqueza, merecendo destaque Thomas Schubert, que exibe uma segurança admirável encarnando a introspecção de Leon, e Paula Beer, que praticamente rouba o filme com seu carisma e personalidade, fazendo de Nadja uma mulher absolutamente encantadora (o que até justifica os sentimentos conturbados do protagonista).

Sabendo causar risos sem que estes tirem o peso dramático da narrativa (que fica maior principalmente no terceiro ato), Afire é um belo filme de um diretor cada vez mais aclamado.

Nota:


She Came to Me (2023), de Rebecca Miller:

Novo filme de Rebecca Miller, She Came to Me nos apresenta a Steven Lauddem (Peter Dinklage), um renomado compositor que agora enfrenta um sério bloqueio criativo. Casado com a psicóloga Patricia (Anne Hathaway), ele um dia resolve seguir as dicas dela e se distrair, conhecendo no processo a rebocadora Katrina (Marisa Tomei), que fica obcecada por ele. Ao mesmo tempo ainda acompanhamos o romance adolescente entre o filho de Patricia, Julian (Evan Elisson), e Tereza (Harlow Jane), filha de Magdalena e Trey (Joanna Kulig e Bryan d’Arcy James, respectivamente).

Apesar de contar com um elenco talentoso, o filme se revela bem decepcionante. O roteiro escrito pela própria Rebecca Miller tenta desenvolver tantas coisas na trama sem que nada tenha muita graça, sendo que a partir de determinado momento a cineasta parece nem saber no que focar. Sim, há momentos divertidos envolvendo Peter Dinklage, Anne Hathaway e Marisa Tomei, mas tais momentos não compensam a bobagem bagunçada que o filme acaba sendo.

Acho que o maior elogio que posso fazer a She Came to Me é que pelo menos seus créditos finais são embalados por uma canção original do grande Bruce Springsteen.

Nota:


Caixa-Preta (Black Box, 2023), Asli Özge:

Produzido pelos irmãos Dardenne, Caixa-Preta se passa em um condomínio que é gerado pelo investidor Johannes Horn (Felix Kramer), cujas decisões e modo de gerir estão desagradando alguns moradores, principalmente Erik Behr (Christian Berkel). E as coisas ficam ainda mais à flor da pele quando repentinamente a polícia faz um cordão de isolamento ao redor do condomínio, não permitindo que ninguém entre ou saia dali. O motivo? Bom, é um mistério.

Esse mistério ajuda o diretor Asli Özge a captar a atenção do espectador, ainda que o interesse do realizador esteja menos em explorar essa incógnita e mais em fazer um comentário sócio-político a partir dos embates entre os inquilinos e o investidor. Johannes Horn, por exemplo, não é muito diferente de líderes autoritários que fazem o que querem enquanto tentam calar opositores e destratar figuras que pareçam “suspeitas” (leia-se: minorias). E ao redor disso, inquilinos como Erik lidam não só com tal liderança, mas também com quem é conivente com tudo o que ocorre no condomínio, figuras que chegam a elogiar Horn apenas por ele fazer o básico de sua função como gestor.

O maior problema de Caixa-Preta é que se trata de um filme bastante monótono na maior parte do tempo, não chegando a aproveitar muito a intensidade proporcionada pelas limitações de seu espaço. A exceção quanto a isso é o terceiro ato, quando as coisas fogem um pouco mais do controle. Mas ainda assim Asli Özge concebe um bom thriller.

Nota:


Névoa Prateada (Silver Haze, 2023), de Sasha Polak:

Franky (vivida por Vicky Knight) é uma jovem enfermeira que convive há anos com um desejo de se vingar de quem causou o incêndio que desfigurou parte de seu corpo. Uma raiva constante que afeta até seus relacionamentos. Quando ela conhece Florence (Esme Creed-Miles), ela passa a ter contato com sentimentos mais afetuosos que podem tornar sua percepção de vida menos raivosa.

Névoa Prateada acaba sendo um grande palco para o talento de Vicky Knight, cuja vida inspirou grande parte da concepção de sua personagem (a atriz realmente esteve em um incêndio quando criança e carrega as cicatrizes desde então). Acompanhar o arco dramático de Franky pelas mãos de Knight é fascinante, com a atriz merecendo destaque pela sutileza e pela segurança com a qual encara tudo pelo que a protagonista passa. Nisso, os melhores momentos do filme são exatamente aqueles de maior leveza, como quando Franky está com sua irmã ou com a família de Florence, cenas que são conduzidas com sensibilidade pela diretora Sasha Polak. Não é a toa que a narrativa perde um pouco da força quando se concentra na instabilidade de Florence, mas mesmo isso ainda agrega ao belo arco percorrido pela protagonista.

Nota:



Outros posts da cobertura:

1a parte