Estamos
na reta final da nossa cobertura da Mostra de São Paulo. Já começo a sentir falta
do evento. Eis aqui os comentários sobre mais quatro filmes que assisti, incluindo
simplesmente o grande vencedor do Festival de Cannes deste ano e um documentário
em 3D do lendário Wim Wenders.
Anatomia de Uma Queda (Anatomie d’une chute, 2023), de Justine Triet:
Se Anatomia
de Uma Queda fosse um filme mais preocupado com a solução de seus
conflitos, acho que ele não teria a força que tem. O que faz o longa brilhar é
o caminho que a diretora Justine Triet monta até a linha de chegada, lembrando
uma velha frase de Roger Ebert, que dizia que “Não importa sobre o que é o
filme, mas sim como ele é”.
Anatomia
de Uma Queda basicamente é um drama de tribunal. Depois que seu marido
Samuel (Samuel Maleski) é encontrado morto do lado de fora de casa, a escritora
Sandra (Sandra Hüller) é indiciada como a principal suspeita, o que inicia uma
luta nos tribunais para esclarecer o que exatamente ocorreu: assassinato ou suicídio.
Isso acaba envolvendo até as lembranças do filho deficiente visual do casal, Daniel
(Milo Machado-Graner), que encontrou o corpo do pai.
Logo
na primeira cena do filme, Justine Triet faz algo que já diz muito sobre o que veremos.
Quando Sandra é entrevistada por uma jornalista e um tópico sobre verdade e
ficção surge na conversa, a diretora deixa a cena desfocada por um breve
segundo, logo quando a palavra “verdade” é proferida. Coincidência ou não, ao
longo do filme a verdade sobre tudo o que acontece é o que menos importa, já
que nada indica um caminho claro. E é isso que torna a narrativa de Justine Triet
tão admirável, nos mantendo envolvidos do início ao fim por nos fazer lidar mais
com questionamentos do que propriamente com respostas, nos deixando sempre com
uma pulga atrás da orelha em relação a tudo e todos e permitindo que o espectador
tire suas próprias conclusões.
No
topo disso tudo temos uma Sandra Hüller em atuação digna de prêmios, tornando a
protagonista uma figura multidimensional e simplesmente difícil de julgar, já que
ao mesmo tempo em que ela é capaz de ser manipuladora e fria, ela também soa sincera
em tudo o que diz. Já o jovem Milo Machado-Graner não fica muito atrás e
surpreende ao fazer do personagem uma figura pouco confiável não tanto por sua deficiência,
mas sim por conta de sua fragilidade emocional.
A
Palma de Ouro do Festival de Cannes definitivamente ficou em boas mãos.
Nota:
Atrás das Montanhas (Oura el Jebel, 2023), de Mohamed Ben Attia:
Após passar quatro anos na prisão por ter tido
um ataque de fúria em uma universidade, Rafik (Majd Mastoura) tem o objetivo obsessivo
de mostrar uma descoberta especial a sua família, em especial seu filho Yassine
(Walid Bouchhioua). Começa assim uma jornada em que crenças são colocadas à prova.
Atrás das Montanhas tem um início muito promissor, não demorando
para dar início a discussões sobre crenças e religião a partir do que Rafik deseja
mostrar ao filho, algo que fica ainda mais evidente quando um pastor de ovelhas
(vivido por Samer Bisharat) passa a segui-los a troco de nada. Mas é uma pena que
em determinado momento o roteiro do diretor Mohamed Ben Attia transforme a história
em um thriller clichê de invasão a domicílio, algo que nem condiz muito com os personagens
e torna a narrativa desinteressante, diminuindo a força das discussões que ele propõe.
Nota:
Levemente inspirado por “A Fera da Selva”, novela
de Henry James, A Besta mostra uma realidade em 2044 que foi dominada
por uma inteligência artificial, a ponto de Gabrielle (Léa Seydoux) concluir que
o único jeito de se encaixar na sociedade é se livrando de suas memórias e sentimentos,
o que inclui suas vidas passadas. Acompanhamos, então, a jornada da personagem pelos
anos de 1910, 2014 e 2044, e o relacionamento dela com Louis (George MacKay), que
atravessa todas essas épocas.
Em meio a discussões sobre natureza, misoginia
e tecnologia, este novo trabalho de Bertrand Bonello se revela bastante atual, tratando
essencialmente sobre como a humanidade desperdiça seu próprio potencial. No entanto,
a narrativa conduzida por Bonello nem sempre é interessante. Se por um lado os acontecimentos
de 1910 funcionam dramaticamente, os de 2014 já se revelam um tanto bobos, de forma
que o ritmo do filme acaba sendo um pouco prejudicado pela própria estrutura da
história, que intercala as linhas temporais. No fim, A Besta não deixa de ser eficaz, mas não é uma obra tão memorável de seu realizador.
Nota:
Anselm: O Barulho do Tempo (Anselm: Das Rauschen der Zeit, 2023), de Wim Wenders:
Já
tem um bom tempo que desisti de assistir a filmes em 3D, reservando isso apenas
para quando não há alternativa. Desde que a tecnologia se popularizou, são
raríssimos os casos de obras que a utilizam como parte da narrativa, já que os
grandes estúdios continuam fazendo seus filmes normalmente, convertendo-os para
um 3D inexistente e que serve apenas para inflar as bilheterias. Mas que bom
que ainda temos artistas do calibre de Wim Wenders para mostrar do que a
tecnologia é capaz.
Depois
de fazer um documentário em 3D sobre a bailarina Pina Bausch, o diretor agora
faz o mesmo com o pintor e escultor Anselm Kiefer. Misturando documentário e ficção,
Wenders cria uma experiência poética e imersiva nas obras e na história do
artista, mostrando como ao longo dos anos ele se esforçou para fazer uma arte não
só muito evocativa, mas também provocativa e que mantivesse acesas discussões e
acontecimentos que a maioria talvez não goste muito de pensar sobre. Além disso,
o diretor cria um filme esteticamente belo, sabendo aproveitar muito bem o 3D para
contemplar as obras de Kiefer.
Nota:
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