segunda-feira, 21 de março de 2016

Séries: Demolidor - 2ª temporada

Ao escrever sobre a excelente primeira temporada de Demolidor, no ano passado, mencionei que um dos aspectos interessantes do personagem-título é o fato de seus atos o fazerem andar em uma linha tênue. Por um lado, ele é um herói que busca fazer o bem por sua cidade, mas por outro sua agressividade não deixa de torna-lo parecido com as pessoas que ele condena. Pois discutir os aspectos morais e as consequências pessoais do heroísmo visto no universo violento de Hell’s Kitchen são os pontos que regem essa segunda temporada, que assim como a anterior (e a primeira de Jessica Jones) exibe uma densidade narrativa que a Marvel não coloca tanto nos longas que lança nos cinemas.

Trazendo Doug Petrie e Marco Ramirez como showrunners (substituindo Steven S. DeKnight, que cuidou da primeira temporada), a série volta mostrando logo de cara que a vida de Matt Murdock (Charlie Cox) não mudou tanto depois que ele ajudou a colocar Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio) atrás das grades, mantendo a rotina de ser advogado de dia, ao lado de Foggy (Elden Henson) e da secretária Karen Page (Deborah Ann Woll), e Demolidor à noite. Mas Nova York e seu herói levam um belo choque quando grupos criminosos passam a ter seus membros brutalmente assassinados, obras de um único homem: o ex-fuzileiro Frank Castle (Jon Bernthal), que recebe o apelido de Justiceiro. Ao mesmo tempo, Matt se vê tendo que lidar com o retorno de sua antiga paixão, Elektra Natchios (Élodie Yung), precisando ajuda-la a derrubar planos da Yakuza – ou de um grupo muito maior.

Como podem ver, em termos de trama, essa segunda temporada se diferencia daquilo que vimos na primeira. Antes tínhamos acompanhado uma narrativa mais direta, focada no embate com Wilson Fisk, mas agora a série tenta lidar com mais coisas de uma só vez ao dividir sua história entre Frank Castle e Elektra. É curioso ver como os roteiros desenvolvem essas duas tramas centrais, criando pequenos arcos narrativos dentro de cada uma e fazendo com que, ao menos durante boa parte do tempo, elas se complementem tematicamente e causem impacto uma na outra. O único problema com relação a isso é que a série não consegue manter o ótimo ritmo que estabelece em seus primeiros episódios, principalmente em seu terço final quando uma das tramas vira o centro quase absoluto da narrativa, de forma que é inevitável sentir que a temporada começa muito melhor do que como termina, ao contrário do que aconteceu na anterior.

No entanto, a série ainda impressiona em vários aspectos, a começar pela forma como aborda a discussão moral envolvendo os ideais dos personagens, algo que ganha maiores contornos quando Frank Castle está em cena. Por mais violento que Matt Murdock seja ao pegar os criminosos, ele tem plena noção de que o que o separa deles é o fato de ele não mata-los, limite que pode vir desde seu lado religioso (ele menciona que Deus é quem decide essas coisas) até de seu lado advogado, que acredita que matar é errado e que quer provar que o sistema judiciário funciona. É um limite com o qual Frank Castle, obviamente, não se importa. Se referindo ao protagonista como um covarde que não termina o serviço (“Você bate neles e eles levantam, eu bato e eles ficam no chão”, ele diz), Castle é uma figura incrivelmente brutal, movido pela raiva/tristeza proporcionada por um trauma pessoal, que o fez perder grande parte de sua humanidade. Mas é claro que, mesmo assim, uma parcela da população de Nova York (e desconfio que dos espectadores também) aplaude os atos do personagem, que esquece que está limpando a sujeira das ruas com mais sujeira. Até por isso o julgamento que ocorre durante alguns episódios é uma jogada inspirada por parte dos realizadores quanto a como conduzir a introdução de Castle nesse universo.

Enquanto isso, a série também volta a mostrar um alto nível no que diz respeito à ação, apresentando várias sequências ágeis e muito bem coreografadas, como pode ser visto nos primeiros encontros entre o Demolidor e o Justiceiro ou na luta que se passa no corredor de uma prisão (e que não economiza no sangue, em um dos momentos mais violentos da temporada). Mas o maior destaque nesse quesito é a longa sequência no terceiro episódio na qual o protagonista enfrenta uma gangue de motoqueiros. Feita em plano-sequência, a cena tem como claro objetivo superar a excepcional luta no corredor vista na primeira temporada, sendo ainda mais complexa e empolgante, de forma que nem os cortes claramente mascarados durante sua execução diminuem seu brilhantismo.

Se a ação mantém a eficiência, o mesmo vale para o elenco. No papel de Matt Murdock, Charlie Cox volta a exibir carisma, sendo hábil também ao deixar claro o desgaste físico e emocional do personagem em meio a sua vida dupla, e ele até chega a ter dúvidas quanto a eficácia de seus esforços como herói, o que o torna um pouco mais humano. Enquanto isso, o Foggy de Elden Henson ganha oportunidades para provar ser muito mais do que um alívio cômico, mostrando seu talento como advogado e sua preocupação com o melhor amigo mesmo quando a amizade deles está balançada. Algo parecido ocorre com Deborah Ann Woll, que tem em Karen uma personagem que não fica apenas na função de interesse amoroso, revelando-se uma investigadora dedicada e persistente. E chegamos, claro, a Jon Bernthal e Élodie Yung, as duas principais adições da série. Sendo o quarto intérprete de Frank Castle (Dolph Lundgreen, Thomas Jane e Ray Stevenson já encarnaram o personagem no cinema), Bernthal traz intensidade a um homem que, por trás de sua faceta monstruosa, não deixa de ser essencialmente trágico, e seu excelente monólogo no quarto episódio é prova disso. Já Yung cria uma Elektra diferente daquela de Jennifer Garner, interpretando-a como uma figura rebelde e inconsequente. Mas vale dizer que nem sempre ela é interessante, sendo que a dinâmica levemente tensa construída entre ela e o protagonista também não foge muito da obviedade.

Mais preocupada em contar sua história do que em ficar fazendo conexões com o restante do universo Marvel (quando isso ocorre, é sempre de maneira orgânica), essa segunda temporada de Demolidor pode ter algumas irregularidades, mas seus acertos compensam isso satisfatoriamente. Com a força vista aqui, a produção mantém o ótimo nível das séries que a Marvel está fazendo com a Netflix, além de deixar a curiosidade quanto ao que virá a seguir.


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