domingo, 12 de abril de 2015

Séries: Demolidor


Quando foi anunciado que a Marvel iria trazer o Demolidor (um de seus melhores e mais populares personagens) em uma série da Netflix, isso veio como uma sacada inesperada e ao mesmo tempo interessante. Inesperada porque nos acostumamos a ver heróis desse calibre indo para o cinema, e quando os direitos do personagem voltaram para a Marvel, a ideia inicial parecia ser a de realizar um novo filme, que faria aquele estrelado por Ben Affleck em 2003 ser completamente esquecido. E interessante porque a Netflix vem exibindo uma ambição muito bem-vinda em termos de séries, sendo que os quadrinhos do Demolidor sempre mostraram potencial para render uma produção bacana, independentemente de sua mídia. Se a sacada foi boa, melhor ainda é ver como essa primeira temporada da série aproveita isso admiravelmente.

Criada por Drew Goddard (diretor do ótimo O Segredo da Cabana) e com produção executiva de Steven S. DeKnight (de Spartacus), Demolidor se passa tempos depois da Batalha de Nova York (vista em Os Vingadores) e segue o advogado Matthew Murdock (Charlie Cox), que ficou cego após um acidente quando criança (algo que aumentou o alcance de seus outros sentidos) e agora acaba de abrir uma firma junto com seu melhor amigo Franklyn “Foggy” Nelson (Elden Henson). Mas enquanto pratica a advocacia de dia, à noite ele usa suas habilidades físicas e sensoriais para virar um vigilante que cansou de ver sua cidade, em especial o bairro de Hell’s Kitchen, ser dominada por criminosos. Indo cada vez mais fundo em sua luta contra o crime e ganhando aliados aos poucos, como a enfermeira Claire (Rosario Dawson) e o jornalista Ben Urich (Vondie Curtis-Hall), Matt acaba batendo de frente com o misterioso empresário Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), cujas ideias para tornar a cidade um lugar melhor não têm uma natureza particularmente boa.

O que se percebe logo nos primeiros momentos de Demolidor é que por mais que tudo seja parte de um único universo, o mundo de Matt Murdock não é o mesmo de Tony Stark, Steve Rogers, Thor e todos os outros heróis da Marvel que vimos no cinema e na TV. Hell’s Kitchen é um ambiente sujo e brutal, no qual boas pessoas às vezes se veem obrigadas a cometer atos horríveis, sendo que elas crescem sem esperança por algo melhor. Esse universo sombrio é abraçado com gosto pelos realizadores, o que resulta em uma série com um tom mais adulto do que o de qualquer outra produção da Marvel Studios, com direito até a um nível de violência muito mais pesado (a maneira como Wilson Fisk arrebenta um inimigo ao final do quarto episódio é o ápice nesse quesito). Além disso, se outros heróis enfrentam figuras com armaduras de alta tecnologia armamentista, deuses asgardianos, alienígenas ou uma organização terrorista nazista, Matt Murdock encara o submundo do crime talvez em sua forma mais pura, com traficantes, estupradores, chefes do crime organizado e assim por diante, e a série deixa claro que esse é o foco do personagem logo no final do primeiro episódio, numa sequência que traz o protagonista golpeando um saco de areia, enquanto àqueles que ele realmente gostaria de socar seguem normalmente suas atividades.

Mas um detalhe que sempre contribuiu muito para que o Demolidor fosse interessante é que, como herói, ele anda numa linha tênue entre fazer o bem e ser alguém cujos atos são parecidos com os daqueles que ele condena. É algo que o filme de 2003 chegou a inserir em sua história, ainda que rapidamente. Mas na série isso aparece com mais força, principalmente na segunda metade da temporada, e não é à toa que muitos confundem o “Homem da Máscara” com um criminoso em vários momentos. Colocando o protagonista em excelentes discussões morais, que rendem alguns belos diálogos e ajudam no desenvolvimento do personagem, Drew Goddard e companhia novamente demonstram compreender a natureza do herói que têm em mãos, não se esquivando de questões importantes que o envolvem.

Tudo isso é captado perfeitamente ao mesmo tempo em que a série mostra uma calma notável quando o assunto é o desenvolvimento de sua trama e seus personagens. Em nenhum momento Demolidor parece ter pressa, apresentando os elementos da história naturalmente e desenvolvendo-os eficientemente, de forma que eles não se tornam peças desperdiçadas dentro do quebra-cabeça que é montado. Assim, a temporada até pode ficar calcada em Matt, Foggy e sua secretária Karen Page (Deborah Ann Woll) se esforçando para expor as atividades ilegais de Wilson Fisk, mas ao longo de dois ótimos episódios (o sétimo e o oitavo) ela quase pausa essa linha principal para desenvolver subtramas que se conectam ao passado do herói e do vilão, nos fazendo compreender um pouco mais como eles se transformaram naquilo que vemos. E se em termos de história a série se sai bem, o mesmo pode ser dito sobre o quesito ação, onde ela empolga ao aproveitar as habilidades de seu personagem o máximo que pode. Nisso, é impossível não destacar a luta que encerra o segundo episódio. Filmado em um longo plano aparentemente sem cortes (lembrando um pouco a famosa sequência de Oldboy, até por se passar em um corredor), esse confronto é um dos melhores momentos não só da série, mas também entre todas as produções que a Marvel já lançou.

E finalmente chegamos ao ótimo elenco, responsável por boa parte do investimento emocional que colocamos na série. Vivendo Matt Murdock com carisma e segurança essenciais, Charlie Cox faz dele um personagem que teme que seus atos sacrifiquem sua integridade e prejudiquem àqueles com quem se importa, conduzindo-o maravilhosamente bem por seus dilemas. Enquanto isso, Elden Henson e Deborah Ann Woll ganham espaço para fazer de Foggy e Karen Page figuras cativantes e inteligentes a sua própria maneira, além de ajudarem a ressaltar o lado puramente humano do protagonista, tendo uma ótima química com Cox (e é por isso que a série incomoda sempre que sugere um triângulo amoroso entre eles). E se Rosario Dawson deixa uma forte impressão como Claire (o que só ajuda a tornar decepcionante o fim de sua participação), Vondie Curtis-Hall faz de Ben Urich um jornalista que tenta se manter honesto e relevante mesmo que sua profissão já não peça mais isso. No entanto, se há um destaque absoluto no elenco de Demolidor este é Vincent D’Onofrio, que ganha a chance de conceber Wilson Fisk como um vilão imprevisível e implacável, mas que também tem um lado tímido, traumatizado e extremamente sensível, que ele deixa aflorar principalmente quando está com sua amada Vanessa Marianna (Ayelet Zurer) e até com seu braço direito, James Wesley (o ótimo Toby Leonard Moore), que, inclusive, consegue ser quase tão ameaçador quanto seu chefe.

Depois da ótima Agents of SHIELD (que pode ter tido um início razoável, mas melhorou consideravelmente em sua atual segunda temporada) e da excelente Agent Carter, a Marvel dá mais um bom passo no mundo das séries com Demolidor. E esperemos que uma nova temporada (ou quem sabe um novo filme?) seja anunciada em breve. Afinal, como indica a ponta solta deixada no fim do sétimo episódio, há muitas coisas para explorar com esse personagem e será ótimo vê-lo novamente em ação.

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