sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Carne Trêmula

A evolução do cinema espanhol é algo que pode ser percebido se compararmos os filmes produzidos no país na década de 1970 (Cría Cuervos, O Espírito da Colmeia, entre outros) e os filmes de Pedro Almodóvar. Isso por que naquela época começaram a surgir diretores corajosos o bastante para criticar a ditadura de Francisco Franco, que perdurou na Espanha no período de 1939 a 1975, enquanto que Almodóvar é a representação perfeita da maior liberdade de expressão possibilitada quando esse regime terminou. Em Carne Trêmula, ao mesmo tempo em que conta uma história envolvente e muito bem tramada, o diretor faz uma bela declaração de alívio quanto ao fato de aqueles tempos de medo e insegurança terem acabado.
Escrito pelo próprio Almodóvar, Carne Trêmula conta a história de Víctor Plaza (Liberto Rabal), jovem que é apaixonado por Elena (Francesca Neri). Durante uma discussão entre eles, a dupla de policiais David (Javier Bardem) e Sancho (Jose Sancho) intervém. Sancho e Víctor brigam por uma arma, que acaba disparando e acertando David, deixando-o paraplégico. Sendo culpado por isso, Víctor vai para a cadeia. Seis anos depois, ele volta querendo se vingar de Elena e David, agora casados.
A motivação de Víctor é bem definida por Almodóvar. Na cadeia, o jovem leva uma vida que não merece, em um lugar onde suas maiores preocupações são não pegar AIDS e não se drogar. Enquanto isso, David e Elena formam um casal feliz. Ou pelo menos é o que aparentam ser. O policial se tornou um famoso jogador de basquete em cadeira de rodas, enquanto que Elena cuida de uma creche. Aliás, a mudança que os personagens sofrem depois do disparo da arma é surpreendente. Elena, por exemplo, era viciada em drogas, algo que não se vê nenhum pouco na pessoa em que se tornou, o que nos faz ter uma ideia do quanto seu relacionamento com David a fez repensar sua vida.
Almodóvar começa o filme em 1970, quando a mãe de Víctor, Isabel (uma jovem Penélope Cruz), está prestes a dar a luz ao rapaz em um ônibus. Isso acaba sendo importante para conseguirmos ver a diferença entre esta época e os dias atuais (no caso do filme, 1996). Em 1970, as ruas da Espanha estão desertas à noite, e o motorista do ônibus pensa muito antes de aceitar levar Isabel para o hospital, o que revela seu medo em não seguir as regras impostas por seu trabalho. Agora as coisas são completamente diferentes, como pode ser visto no final do filme, quando uma verdadeira massa de pessoas caminha pelas ruas tranquilamente.
A direção de Almodóvar é primorosa. Além de usar cores quentes ao longo de todo o filme, característica que ressalta sua liberdade de expressão, o diretor coloca tensão em certas cenas, algo que deixa Carne Trêmula ainda mais envolvente. Exemplo disso é a discussão entre Víctor e Elena, uma das melhores cenas do filme. Nessa parte, Almodóvar consegue impor um bom clima de suspense e ainda se preocupa com os relacionamentos entre aqueles personagens. Ele dá atenção até mesmo para o momento em que Elena e David se olham e se apaixonam, algo que fica evidente pelo belo uso do slow motion e da trilha sonora. Mas nada nesta cena é tão tenso quanto o uso da câmera subjetiva, que Almodóvar faz quando Víctor e Sancho estão brigando pela arma, que é balançada de uma maneira que nos deixa sem saber o que ela acertará.
Algo que acontece muito na história de Carne Trêmula é traição, e Almodóvar não incluí cenas desse tipo sem ter algum propósito. Todas as traições que aparecem no filme acabam tendo um papel importante, seja para o desenvolvimento dos personagens ou para ajudar nas reviravoltas da história. Ao colocar dois maridos tendo que lidar com as traições de suas esposas com o mesmo homem, Almodóvar mostra o quão engenhoso é seu roteiro, que é muito bem montado até seu clímax.
As atuações do elenco são muito eficientes. A começar por Liberto Rabal. Víctor não é um criminoso, apesar de ser visto como um pelos outros personagens. Ele é apenas um jovem ingênuo, que ganha carisma graças a seu intérprete. Outro destaque é Francesca Neri, que faz de Elena uma mulher que anseia por prazeres maiores, algo que fica claro no momento em que ela aproveita o cheiro que está em seu corpo antes de tomar banho. Javier Bardem consegue mostrar que David apesar de estar em uma cadeira de rodas, não é nenhum pobre coitado, já que ele consegue levar uma vida normal mesmo tendo uma deficiência. Enquanto isso, Jose Sancho interpreta Sancho como um homem das antigas, que não consegue ver sua mulher, Clara, se tornar uma pessoa mais independente, ultrapassando os limites para mantê-la ao seu lado. E Angela Molina tem em Clara uma personagem que tenta ser aceita pelos homens ao seu redor.
Ao final de Carne Trêmula, um personagem tem uma belíssima fala na qual é dito que “Já faz muito tempo que na Espanha perdemos o medo”. Esta não só é a maneira perfeita para terminar um grande filme, mas também um dos melhores momentos que o cinema espanhol já teve.
Cotação:

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