Woody Allen
é um cineasta com tantas obras admiráveis em sua extensa filmografia,
que se uma delas está entre as melhores é por ser realmente especial.
Isso se encaixa perfeitamente em Crimes e Pecados, de 1989. Aqui, Allen
desenvolve uma narrativa complexa e instigante para tratar alguns de
seus temas queridos, e, em virtude da complexidade destes, é até
surpreendente que haja espaço para o público se divertir.
Crimes e Pecados foca dois personagens. O primeiro é o oftalmologista Judah Rosenthal (Martin Landau), admirado pelas pessoas ao seu redor, mas às voltas com um grande problema: sua amante, Dolores Paley (Anjelica Huston), contará tudo sobre o caso deles para sua esposa, Miriam (Claire Bloom), se ele não se divorciar. Judah começa então a pensar em soluções para evitar que sua vida seja destruída. Já o segundo é o cineasta Cliff Stern (o próprio Woody Allen), cujo casamento com Wendy (Joanna Gleason) está indo ladeira abaixo. Fracassado profissionalmente, ele se vê obrigado a aceitar a proposta do cunhado pedante, Lester (Alan Alda), para fazer um documentário sobre ele, apaixonando-se no processo pela produtora Halley Reed (Mia Farrow), com quem passa a discutir o projeto sobre o filósofo Louis Levy (Martin S. Bergmann) que está desenvolvendo.
A partir disso, Woody Allen propõe discussões interessantíssimas de cunhos moral e existencial, refletindo sobre nossos atos como definidores para que nos sintamos melhores ou piores enquanto indivíduos. Com Judah, acompanhamos esses devaneios mais diretamente. Ao longo do filme, ele passa por grandes transformações devido às suas decisões, sendo que Allen inclui toques brilhantes de psicanálise na história, numa espécie de personificação de id, ego e superego. Isso ocorre mais especificamente quando o personagem discute em momentos distintos com seu irmão mafioso, Jack (Jerry Orbach), e o rabino Ben (Sam Waterston) sobre o que fazer com Dolores. Se Judah é o ego, Ben funciona como superego, dando conselhos que indicam algo moralmente adequado, ao passo que Jack serve como o id, empurrando sem pudores o irmão para um lado impulsivo, objetivo e drástico. E Ben ser estabelecido como figura de visão comprometida é uma sacada absolutamente genial de Allen, mostrando o estado do superego de Judah ao expor seu raciocínio com relação ao problema.
Com Cliff as reflexões são tratadas de modo diferente, surgindo mais observacionais, já que ele segue uma série de indivíduos que se revelam diferentes daquilo que aparentam. Ao descobrir que uma pessoa inteligente e admirável cometeu suicídio, por exemplo, é engraçado notar que Cliff se decepciona mais com o fato dela ter deixado uma carta com os dizeres “Saí pela janela” do que com o acontecimento em si, porque, segundo sua percepção, ela seria capaz de escrever palavras muito mais relevantes. Mas isso não é surpreendente por parte do personagem, considerando que ele é um homem que vê nas pessoas apenas aquilo que deseja, evitando aprofundar-se para saber quem elas realmente são.
No entanto, se a maior parte da força de Crimes e Pecados reside nessas discussões centralizadas nos personagens, é inegável que a estrutura do roteiro também é responsável por tornar o filme interessante. Intercalando as histórias de Judah e Cliff enquanto ocasionalmente insere alguns flashbacks, Allen desenvolve seus protagonistas de modo ágil e cativante, fazendo um pequeno quebra-cabeça com as vidas deles. Nesse sentido, o primoroso trabalho da montadora Susan E. Morse merece aplausos por organizar a narrativa de forma orgânica e coesa sem quebrar o ritmo do filme (é até um mistério ela não ter sido lembrada nos mais variados prêmios na época). Além disso, as tiradas de humor do roteiro funcionam maravilhosamente, sobretudo nos diálogos rápidos de Allen, como quando alguém descreve Lester como um fenômeno e Cliff responde: “Chuva ácida também é”.
Com grandes atuações de todo o elenco (destaque especial para Martin Landau, que encarna o peso das decisões de Judah brilhantemente), Crimes e Pecados é um filme de Woody Allen no qual tudo se encaixa perfeitamente. Por um lado “dostoiévskiano”, é um trabalho que, inclusive, chega a dialogar com duas produções que o diretor realizaria quase duas décadas depois: a obra-prima Match Point: Ponto Final e o razoável O Sonho de Cassandra. E, assim como elas, surpreende pela boa dose de pessimismo com que encerra a realidade verossímil vista na tela. Mas o que poderíamos esperar? Afinal, como diz um personagem em determinado momento: “se você quer um final feliz, deveria assistir a um filme hollywoodiano”.
Nota:
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