Os últimos dez dias foram interessantes, para dizer o mínimo.
Como falei logo na primeira parte
dessa cobertura do XVI Fantaspoa, eu não tenho o hábito de cobrir
festivais. Quando disse que tentaria assistir e comentar o maior número de
filmes possível, eu achava que não conseguiria fazer o plano dar certo e o
compromisso (mesmo não sendo muito grande) viria por água abaixo. Mas vejam
só... Até que as coisas correram bem, fazendo minhas inseguranças queimarem a língua.
Acabei assistindo e comentando 25
longas-metragens durante os dez dias de Fantaspoa, o que me deixa meio
longe de poder dizer que vi todos os 49 trabalhos selecionados (isso que ainda havia
vários programas de curtas-metragens que não conferi). Mas considerando que foi
uma primeira tentativa de cobrir um festival, acredito que os filmes que consegui
encaixar em meio a minha rotina dentro de casa foram um bom aprendizado, rendendo
também uma bem-vinda e estimulante distração para os tempos que temos vivido. E foi uma bela edição de Fantaspoa, por mais que assistir aos filmes na tela do meu computador e sozinho no meu quarto por vezes me passasse certa tristeza, já que muitas obras mereciam ser conferidas em uma sala de cinema lotada (quem sabe um dia?).
Olhando aqui os textos que fui
escrevendo ao longo desses dias, admito que sinto certo orgulho. Mas acho que
vocês podem dizer melhor que eu se o conteúdo produzido ficou legal ou não.
Espero que tenham curtido tanto quanto eu curti ver e falar sobre os filmes.
Sem mais delongas, deixo aqui os comentários sobre os últimos quatro filmes que assisti.
Salvação (Guwon, 2020), de Lee Chang-moo:
O corpo de uma prostituta é
encontrado em um rio depois de ela roubar 1 bilhão de won de seu cafetão. O
detetive Seok-jae investiga o caso mesmo com o seu parceiro afirmando ter sido
um suicídio. Mas as coisas se tornam um pouco maiores quando a investigação
leva Seok-jae a uma misteriosa casa que serve como uma espécie de centro
espiritual para seus residentes.
Apesar de o suposto assassinato
ou suicídio abrir a narrativa deste Salvação, ele na verdade nem chega a
ser o ponto principal da trama, sendo um ponto de partida que o roteiro às
vezes parece esquecer. Mas a história não deixa de ser menos intrigante por
isso, nos conduzindo por ambientes inquietantes e apresentando personagens
amaldiçoados pela culpa. São detalhes que o diretor estreante Lee Chang-moo
utiliza bem para falar da falsidade de certos negócios (ou instituições), que
se aproveitam das crenças das pessoas e apertam suas fraquezas enquanto
prometem recompensas enganosas.
Zumbis no Canavial: O Documentário (Zombies en el Cañaveral: El Documental, 2019), de Pablo Schembri:
Este documentário argentino trata
de um assunto muito interessante. Em 1965, um filme de zumbi chamado “Zumbis no
Canavial” foi realizado na província de Tucumán. O longa acabou se perdendo,
impossibilitando muitas pessoas de assisti-lo, mas ainda assim deixou sua marca
no cinema, originando um subgênero que se mantém de pé até hoje, mas cujo
início nos acostumamos a creditar ao clássico A Noite dos Mortos-Vivos,
de George A. Romero, que foi lançado três anos depois.
Bem, claro que se trata de um
falso documentário, mas devo admitir que Zumbis no Canavial: O Documentário
conta com um trabalho de pesquisa tão instigante e uma estética tão convincente
que, pontualmente, me peguei acreditando no que era jogado na tela. E
certamente isso faz parte da diversão que ele proporciona, sendo engraçado
acompanhar também o sucesso e as influências que “Zumbis no Canavial”
supostamente veio a ter internacionalmente, de forma que às vezes é um pouco
triste que nada disso tenha acontecido.
Mas engana-se quem acha que não
devemos levar o longa de Pablo Schembri a sério. Mesmo partindo de uma obra
ficcional para conceber a narrativa, o diretor faz um belo resgate da história
dos filmes de terror (há menções até ao nosso saudoso José Mojica Marins), além
de explicar muito bem a relação do gênero com o período conservador e
ditatorial que a Argentina viveu naquela época, algo que podemos estender para toda
a América Latina. Assim, Zumbis no Canavial: O Documentário se revela um
surpreendente falso documentário que consegue falar muitas verdades.
Barry Fritado (Fried Barry, 2020), de Ryan Kruger:
Se Sob a Pele ingerisse
uma certa quantidade de entorpecentes, o resultado provavelmente seria algo
como este Barry Fritado. A história dessa produção sul-africana gira em
torno do personagem-título (interpretado por Gary Green), um viciado em drogas
que em um dia qualquer é abduzido por uma nave extraterrestre. No processo, seu
corpo é possuído por um alienígena que passa então a andar pelas ruas, vivendo
a experiência terrestre com o que surge em seu caminho, sejam isso drogas, sexo
ou problemas com figuras violentas.
E assim passamos a acompanhar uma
jornada com boas doses de bizarrice e psicodelia, mesmo que durante boa parte
do tempo o filme tenha um ritmo meio monótono e não impressione tanto. Mas o
diretor Ryan Kruger merece créditos pelo tom mais sério que impõe na narrativa,
ressaltando como o caminho percorrido pelo protagonista está longe de ser uma
grande festa, tendo em vista o ambiente inóspito que a Terra é capaz de ser. E
é impossível não destacar a atuação de Gary Green, que cria um protagonista
curioso mesmo que quase não tenha diálogos, usando apenas suas expressões faciais
e postura em cena.
Ausente (Poissa, 2019), de Arttu Haglund:
Como seria se pudéssemos nos teletransportar
para longe de uma vida que não nos agrada? É dessa ideia que parte o finlandês Ausente.
Aqui somos apresentados a Matti (Panu Tuomikko), que tem uma vida deprimida ao
lado da esposa Teija (Eeva Putro) e da filha pequena Emma (Julia Hemmilä). Mas
quando ele descobre que tem a habilidade de se teletransportar aleatoriamente
para qualquer lugar, deixando sua esposa e filha sozinhas durante a maior parte
do tempo, as coisas parecem ficar mais relaxadas.
Mas só parecem, já que teletransporte não é uma habilidade que apague sentimentos e responsabilidades, detalhes que ajudam a formar a base emocional da narrativa concebida por Arttu Haglund (estreante em longas-metragens). Matti não tem controle sobre o próprio poder, sumindo dos lugares quando menos espera, o que não deixa de lhe dar uma desculpa perfeita para justificar suas longas ausências, que gradual e naturalmente criam um distanciamento entre ele e a família (a montagem, aliás, se destaca pela forma como consegue simular o poder do protagonista através de cortes secos). E ainda que possamos antecipar algumas conclusões, o roteiro é hábil ao usar o teletransporte para desenvolver questões existenciais, mostrando as dificuldades do sujeito para achar seu lugar no mundo e como as consequências disso podem ser mais tristes que o imaginado.
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Para conferir as outras partes da cobertura do festival, é só clicar nos links abaixo.
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