Logo no início de Aquarius, novo longa-metragem de Kleber
Mendonça Filho (do excepcional O Som ao
Redor), uma personagem olha para uma cômoda e relembra um momento de sua
vida no qual o objeto se mostrou bastante útil, mesmo que em uma função de
importância relativamente mínima. Porque é isso que ocorre com quaisquer objetos
materiais que adquirimos ao longo dos anos: são marcados por nossos passos,
criando uma série de memórias que guardamos inevitavelmente. Isso é algo de grande
importância para o filme, sendo usado como ponto de partida para que seu
diretor desenvolva uma narrativa fascinante envolvendo um choque de interesses que
rende ótimas discussões, além de trazer em seu centro uma protagonista
absolutamente brilhante.
Escrito pelo próprio Kleber
Mendonça Filho, Aquarius nos
apresenta a Clara (Sônia Braga), uma aposentada crítica musical que mora no
Recife, em um apartamento no edifício que dá título ao filme. Ela é a última
residente do prédio, já que os outros moradores venderam seus apartamentos para
uma construtora, que pretende demolir o lugar para poder construir um edifício mais
moderno, um projeto liderado pelo jovem Diego (Humberto Carrão). Ainda que o
número de zeros do valor oferecido por seu lar seja bastante atraente, Clara
mantem-se firme em sua decisão de não abrir mão dele, não deixando Diego e seus
colegas muito satisfeitos, o que os faz pensar em maneiras grosseiras para fazê-la
mudar de ideia.
Com o apartamento sendo o lugar
onde Clara fez sua vida, criou seus filhos, viveu suas alegrias e suas
tristezas, a importância dele para ela fica evidente desde o princípio. Porém,
não demora muito para que ele se estabeleça também como a representação dos
ideais da personagem com relação ao que é justo, algo que é até maior do que
ela própria. Assim, do ponto de vista puramente humano, o roteiro de Kleber
Mendonça Filho aborda o embate com a construtora de maneira poderosa, com Clara
defendendo a todo custo suas memórias e o direito que tem de ficar em sua casa,
ao passo que Diego e seus colegas estão mais preocupados em terem seus interesses
atendidos, não se importando se isso ocorrer de maneira errada e achando que
dinheiro é o suficiente para convencer qualquer pessoa, não entendendo que
algumas coisas simplesmente não podem ser compradas. E é bacana ver que o roteiro
tem noção que essa pequena briga envolve mais do que apenas os dois lados em
que se concentra, lembrando também daqueles que já venderam os apartamentos e mostrando
que, quando alguém se sente prejudicado, até um ato correto pode ser visto como
equivocado e egoísta dependendo da visão da pessoa, o que só ajuda a tornar as
discussões mais complexas e instigantes.
Mas se acompanhar o desenrolar dessa história já rende uma experiência rica, as coisas ficam ainda
melhores por termos em Kleber Mendonça Filho um diretor cada vez mais
interessante. Além de ditar um ritmo que envolve o espectador do início ao fim,
o realizador exibe uma sensibilidade por vezes até tocante na forma como trata
a história de sua protagonista, sem falar que ele consegue divertir com os
personagens quando deseja (a cena em que Clara vai a uma festa com as amigas) e
criar tensão quando precisa (a sequência em que ela abre outros apartamentos), mostrando
uma versatilidade admirável na condução da narrativa.
Mas vale dizer que Clara é responsável
por grande parte da razão de ser de Aquarius.
Mulher forte, independente e ativa (inclusive sexualmente), a personagem não
permite que seja passada para trás pela idade ou pela constante modernização sofrida
pelo mundo, sendo que ainda podemos ver desde o início como ela é amada, admirada
e respeitada pelas pessoas ao seu redor, o que só prova sua força de caráter e
sua humanidade. Trata-se de uma personagem que não poderia ser mais
multidimensional, tendo na grande Sônia Braga uma intérprete de peso e que carrega
a narrativa com segurança absoluta, em uma daquelas atuações que, de tão boas, imortalizam
carreiras. Enquanto isso, o elenco de apoio também é excelente interpretando
figuras que ajudam a enriquecer a narrativa sempre que aparecem, desde Humberto
Carrão como Diego até Irandhir Santos como o salva-vidas Roberval e Maeve Jinkings
no papel de Ana Paula, filha de Clara, que protagoniza com a mãe uma cena lindíssima
quando elas discutem a proposta pelo apartamento.
Aquarius acaba sendo sobre muito mais do que a história de uma mulher fascinante
e a preservação de algo importante para ela. É também sobre resistir a injustiças, principalmente quando quem a comete passa a
jogar sujo, e saber contra-atacar. Em suma, por coincidência ou não, Kleber Mendonça Filho e sua
equipe fizeram um longa que dialoga muito com o momento atual de seu país (“Todo
bom filme é um documento de sua época”, dizia o cineasta francês Eric Rohmer) e
que revela ser um exemplar magnífico do nosso cinema, se colocando desde já
entre os melhores filmes do ano.
Nota:
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