domingo, 6 de outubro de 2019

Coringa


Um dos papéis que a Arte exerce, em maior ou menor grau, é o de refletir aspectos do mundo em que vivemos, podendo inclusive tirar o público de sua zona de conforto, nos colocando diante de realidades bem diferentes daquelas que vivemos no nosso dia-a-dia. Isso inclui até mesmo os lados mais perversos da Humanidade, algo que inúmeras obras já exploraram, erguendo um espelho cujo reflexo muitas vezes não é algo particularmente agradável de encarar. É essa linha que Todd Phillips (outrora responsável pela série Se Beber, Não Case!) segue neste Coringa protagonizado por Joaquin Phoenix.

Desenvolvendo uma história de origem para um dos vilões mais famosos dos quadrinhos e que tanto já foi retratado no cinema, Coringa nos apresenta a Arthur Fleck, um aspirante a comediante que, apesar de seus esforços, está longe de ser uma figura mentalmente saudável ou próxima de realizar seus sonhos. E é acompanhando sua realidade nenhum pouco privilegiada e a forma como o mundo ao seu redor interage com ele (e vice-versa) que vemos um homem, aos poucos, se entregar a própria psicopatia.


Em primeiro lugar, é preciso dizer que o estudo de personagem proposto por Todd Phillips em momento algum tenta justificar a violência cometida pelo protagonista. O que o diretor busca fazer é entender como um indivíduo como Arthur pode se tornar alguém tão temível, algo que me fez lembrar um pouco o que José Padilha fez ao contar a história de Sandro do Nascimento no excepcional Ônibus 174. Com isso em mente, Phillips é hábil ao mostrar de maneira bastante lógica como o descaso das pessoas com uma parcela de seu povo, em um sistema social que já deixa muitos sem qualquer tipo de suporte enquanto figuras poderosas ficam cada vez mais poderosas, pode dar um empurrãozinho para que alguém possa ir de encontro ao seu lado mais sombrio.

Seguindo essa proposta, Phillips e o diretor de fotografia Lawrence Sher merecem créditos por retratarem a ambientação em Gotham City através de uma paleta de cores dessaturada, estabelecendo assim não só o tom mais pesado da narrativa, mas também a própria pobreza das condições de vida do protagonista. É uma lógica que muda por completo quando vamos, por exemplo, para o interior de um cinema frequentado pelas pessoas mais ricas da cidade, local cuja grandeza contrasta perfeitamente com o claustrofóbico e precário apartamento que Arthur divide com sua mãe, Penny (a ótima Frances Conroy).


Mas boa parte da eficiência de Coringa se deve a Joaquin Phoenix. Sendo ele o protagonista do longa, com um arco dramático muito bem definido, é claro que o ator constrói algo completamente diferente dos vilões vividos por Jack Nicholson e Heath Ledger (os dois mais lembrados quando falamos das versões cinematográficas do personagem). Presente em todas as cenas do filme, o ator encarna a trajetória de Arthur Fleck com brilhantismo, concebendo um sujeito até indefeso inicialmente, aspecto que faz a transformação dele ser ainda mais forte e angustiante, sendo notável também sua postura em cena, que claramente se torna mais segura e determinada à medida que ele abraça sua natureza violenta.

Se um dos detalhes que tornam o Coringa um personagem tão icônico (seja nos quadrinhos ou no cinema) é o fato de ele não ter uma origem bem definida, acaba sendo até irônico quando artistas concebem histórias interessantes exatamente sobre isso. E o que Todd Phillips e sua equipe realizam neste filme certamente é um desses casos, apresentando uma forte representação da degradação humana.

Nota:


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