Um dos personagens mais famosos dentre
aqueles criados por Agatha Christie (ao lado de Miss Marple), o belga Hercule
Poirot é um detetive fascinante. Ler as histórias protagonizadas por ele representa
uma experiência deliciosa não só por conta do quão intrigante elas são, mas
também pela grande inteligência e perspicácia que o personagem exibe para
resolver os casos. É exatamente por isso que é bacana ver o potencial
cinematográfico desse material ser novamente explorado, o que no passado rendeu
longas interessantes como Morte Sobre o
Nilo, protagonizado por Peter Ustinov, e Assassinato no Expresso do Oriente, lançado em 1974 e dirigido por
ninguém menos que o mestre Sidney Lumet. É esta última adaptação que ganha uma
nova versão agora pelas mãos de Kenneth Branagh, que além de dirigir também
assumiu a responsabilidade de ser o novo Poirot dos cinemas. E o resultado não decepciona.
Escrito por Michael Green (que em
2017 já incluiu em seus créditos os roteiros dos excepcionais Logan e Blade Runner 2049), Assassinato
no Expresso do Oriente traz Hercule Poirot pronto para descansar após
resolver um caso em Jerusalém, um plano que muda quando ele é chamado para mais
um trabalho em Londres. Para chegar lá, Poirot sobe a bordo do Expresso do
Oriente, tendo uma viagem relativamente tranquila até o momento em que um dos
passageiros surge assassinado, fazendo-o pôr em prática suas habilidades a fim
de encontrar o culpado entre os outros passageiros do trem.
É uma história clássica de whodunnit (leia-se: quem matou?), e o
roteiro desenvolve isso com calma, sem sentir a necessidade de entregar tudo
facilmente para o espectador. Na verdade, Assassinato
no Expresso do Oriente praticamente nos coloca na pele de Poirot, nos
fazendo conhecer os outros personagens e ficar cientes de determinadas
informações ao mesmo tempo em que o protagonista, o que faz toda a investigação
transcorrer de forma orgânica, sem que grandes conclusões surjam
repentinamente. E ainda que o final possa ser bastante conhecido (não se
preocupem, eu não vou revela-lo nessa crítica), ver Poirot gradualmente pegar
cada peça que aparece em seu caminho e montar o quebra-cabeça da trama é algo
que não poderia ser mais instigante.
Assim, Kenneth Branagh concebe
uma narrativa que envolve o público com naturalidade, e mesmo que o filme passe
a maior parte do tempo em um único cenário (o Expresso do Oriente), ele jamais soa
parado, seja porque o diretor consegue impor um ritmo ágil e ressaltar
eficientemente a tensão quando precisa ou porque tem sempre alguma coisa
acontecendo na trama. Além disso, a direção de Branagh conta com uma elegância que
rende momentos bacanas tanto narrativa e quanto esteticamente, como o
plano-sequência que segue Poirot atravessando o trem enquanto passa pelos
outros passageiros ou a cena em que o corpo da vítima é descoberto, filmada em
um belo plano plongé (quando a câmera
filma por um ângulo de cima para baixo).
Enquanto isso, o fantástico
elenco coadjuvante (que inclui nomes que vão desde veteranos como Judi Dench e
Derek Jacobi, passando por Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Johnny Depp e
Willem Dafoe e chegando a atores que passaram a chamar atenção recentemente,
como Daisy Ridley e Josh Gad) exerce admiravelmente suas funções, criando
personagens com personalidades bem definidas e que exibem uma complexidade
surpreendente. Aliás, o fato de Branagh incluir intérpretes negros e latinos no
elenco (o que é inexistente tanto no livro original quanto na versão de Sidney Lumet)
mostra uma preocupação com a diversidade que traz certa modernização ao filme,
sendo que o roteiro ainda aproveita isso para fazer breves e certeiros
comentários sociais. É algo que vemos, por exemplo, na cena em que Poirot é
avisado de que, caso não investigue o assassinato, a polícia provavelmente irá
culpar o Dr. Arbuthnot (Leslie Odom Jr.) ou o chofer Biniamino Marquez (Manuel
Garcia-Rulfo), apenas por conta da etnia deles.
Mas é mesmo o próprio Kenneth
Branagh quem acaba se destacando mais em frente às câmeras. Interpretando
Hercule Poirot, o ator traz um carisma e um senso de humor que conquistam o
espectador rapidamente, além de encarnar com naturalidade a inteligência do
personagem (estabelecida já na ótima sequência inicial em Jerusalém) e seus
maneirismos, como a vaidade dele com seu icônico bigode, o desconforto que
sente ao ver algo errado (a cena em que ele pisa em um montinho de fezes é
divertida nesse sentido) ou seu sotaque. Para completar, é bom ver que o filme
não se desvia do peso enfrentado por Poirot por conta do que descobre ao longo
da investigação, discutindo com sensibilidade a moral de sua resolução e dando
ao protagonista um arco dramático interessante, tendo em vista a maneira
complexa como tal resolução e os ideais de justiça dele (“Há o certo e o
errado, e nada entre eles”) se chocam.
Assassinato no Expresso do Oriente mostra saber como prender a
atenção do público assim como sua obra original, fazendo jus a esta. E tendo em
vista a eficácia do filme e do trabalho de Kenneth Branagh, eu adoraria ver o
ator-diretor interpretar Hercule Poirot mais vezes. Histórias com o personagem
é que não faltam para isso.
Nota:
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