Ao escrever sobre a excelente
primeira temporada de
Demolidor, no
ano passado, mencionei que um dos aspectos interessantes do personagem-título é
o fato de seus atos o fazerem andar em uma linha tênue. Por um lado, ele é um
herói que busca fazer o bem por sua cidade, mas por outro sua agressividade não
deixa de torna-lo parecido com as pessoas que ele condena. Pois
discutir os aspectos morais e as consequências pessoais do heroísmo visto no
universo violento de Hell’s Kitchen são os pontos que regem essa segunda
temporada, que assim como a anterior (e a primeira de
Jessica Jones) exibe uma densidade narrativa que a Marvel não
coloca tanto nos longas que lança nos cinemas.

Trazendo Doug Petrie e Marco
Ramirez como
showrunners
(substituindo Steven S. DeKnight, que cuidou da primeira temporada), a série
volta mostrando logo de cara que a vida de Matt Murdock (Charlie Cox) não mudou
tanto depois que ele ajudou a colocar Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio) atrás das
grades, mantendo a rotina de ser advogado de dia, ao lado de Foggy (Elden
Henson) e da secretária Karen Page (Deborah Ann Woll), e Demolidor à noite. Mas
Nova York e seu herói levam um belo choque quando grupos criminosos passam a
ter seus membros brutalmente assassinados, obras de um único homem: o
ex-fuzileiro Frank Castle (Jon Bernthal), que recebe o apelido de Justiceiro.
Ao mesmo tempo, Matt se vê tendo que lidar com o retorno de sua antiga paixão,
Elektra Natchios (Élodie Yung), precisando ajuda-la a derrubar planos da Yakuza
– ou de um grupo muito maior.

Como podem ver, em termos de trama,
essa segunda temporada se diferencia daquilo que vimos na primeira. Antes tínhamos
acompanhado uma narrativa mais direta, focada no embate com Wilson Fisk, mas
agora a série tenta lidar com mais coisas de uma só vez ao dividir sua história
entre Frank Castle e Elektra. É curioso ver como os roteiros desenvolvem essas duas
tramas centrais, criando pequenos arcos narrativos dentro de cada uma e fazendo
com que, ao menos durante boa parte do tempo, elas se complementem
tematicamente e causem impacto uma na outra. O único problema com relação a
isso é que a série não consegue manter o ótimo ritmo que estabelece em seus
primeiros episódios, principalmente em seu terço final quando uma das tramas vira
o centro quase absoluto da narrativa, de forma que é inevitável sentir que a
temporada começa muito melhor do que como termina, ao contrário do que aconteceu
na anterior.

No entanto, a série ainda impressiona
em vários aspectos, a começar pela forma como aborda a discussão moral envolvendo
os ideais dos personagens, algo que ganha maiores contornos quando Frank Castle
está em cena. Por mais violento que Matt Murdock seja ao pegar os criminosos,
ele tem plena noção de que o que o separa deles é o fato de ele não mata-los, limite
que pode vir desde seu lado religioso (ele menciona que Deus é quem decide
essas coisas) até de seu lado advogado, que acredita que matar é errado e que quer
provar que o sistema judiciário funciona. É um limite com o qual Frank Castle,
obviamente, não se importa. Se referindo ao protagonista como um covarde que
não termina o serviço (“Você bate neles e eles levantam, eu bato e eles ficam
no chão”, ele diz), Castle é uma figura incrivelmente brutal, movido pela raiva/tristeza
proporcionada por um trauma pessoal, que o fez perder grande parte de sua humanidade.
Mas é claro que, mesmo assim, uma parcela da população de Nova York (e
desconfio que dos espectadores também) aplaude os atos do personagem, que
esquece que está limpando a sujeira das ruas com mais sujeira. Até por isso o
julgamento que ocorre durante alguns episódios é uma jogada inspirada por parte
dos realizadores quanto a como conduzir a introdução de Castle nesse universo.

Enquanto isso, a série também volta
a mostrar um alto nível no que diz respeito à ação, apresentando várias sequências
ágeis e muito bem coreografadas, como pode ser visto nos primeiros encontros
entre o Demolidor e o Justiceiro ou na luta que se passa no corredor de uma
prisão (e que não economiza no sangue, em um dos momentos mais violentos da
temporada). Mas o maior destaque nesse quesito é a longa sequência no terceiro
episódio na qual o protagonista enfrenta uma gangue de motoqueiros. Feita em
plano-sequência, a cena tem como claro objetivo superar a excepcional luta no
corredor vista na primeira temporada, sendo ainda mais complexa e empolgante, de
forma que nem os cortes claramente mascarados durante sua execução diminuem seu
brilhantismo.

Se a ação mantém a eficiência, o
mesmo vale para o elenco. No papel de Matt Murdock, Charlie Cox volta a exibir
carisma, sendo hábil também ao deixar claro o desgaste físico e emocional do personagem
em meio a sua vida dupla, e ele até chega a ter dúvidas quanto a eficácia de
seus esforços como herói, o que o torna um pouco mais humano. Enquanto isso, o
Foggy de Elden Henson ganha oportunidades para provar ser muito mais do que um alívio
cômico, mostrando seu talento como advogado e sua preocupação com o melhor
amigo mesmo quando a amizade deles está balançada. Algo parecido ocorre com Deborah
Ann Woll, que tem em Karen uma personagem que não fica apenas na função de
interesse amoroso, revelando-se uma investigadora dedicada e persistente. E
chegamos, claro, a Jon Bernthal e Élodie Yung, as duas principais adições da
série. Sendo o quarto intérprete de Frank Castle (Dolph Lundgreen, Thomas Jane
e Ray Stevenson já encarnaram o personagem no cinema), Bernthal traz intensidade
a um homem que, por trás de sua faceta monstruosa, não deixa de ser
essencialmente trágico, e seu excelente monólogo no quarto episódio é prova
disso. Já Yung cria uma Elektra diferente daquela de Jennifer Garner, interpretando-a
como uma figura rebelde e inconsequente. Mas vale dizer que nem sempre ela é interessante,
sendo que a dinâmica levemente tensa construída entre ela e o protagonista também
não foge muito da obviedade.

Mais preocupada em contar sua
história do que em ficar fazendo conexões com o restante do universo Marvel (quando
isso ocorre, é sempre de maneira orgânica), essa segunda temporada de
Demolidor pode ter algumas irregularidades,
mas seus acertos compensam isso satisfatoriamente. Com a força vista aqui, a
produção mantém o ótimo nível das séries que a Marvel está fazendo com a
Netflix, além de deixar a curiosidade quanto ao que virá a seguir.